sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Segunda carta de Caminha

Quererá Vossa Alteza saber novas da terra descoberta 500 anos atrás, à qual, em razão de uma árvore que lá então grassava, deu-se o nome de Brasil. Muito folgaria em satisfazer vosso desejo, se outras fossem as notícias que vos pudesse mandar. Mas que resta a um súdito leal senão satisfazer a ordem e o desejo do seu rei? Segue, então, um sucinto relato do que reencontramos.
Fácil foi chegar à terra desta vez, já que não mais devíamos simular o acaso como pretexto para o seu achamento. Sem ter que invocar o motivo das calmarias, que tanto disfarçou nosso real intento há quinhentos anos, quanto retardou em vários dias a viagem, vimo-nos em mui pouco tempo defrontando a costa brasílica. Esta, bem antes de se anunciar por terras ou árvores, evidenciou-se a nossos olhos por uma singular cor escura das águas. O escuro formava uma mancha de várias milhas em derredor, da qual brotavam algas e peixes mortos. Vendo isso, alguns dos nossos temeram uma iminente convulsão marinha, e se ajoelharam e puseram-se a rezar, invocando a Deus e a Vossa Alteza. E só se apaziguaram quando chegaram à praia e lhes foi explicado que a mancha era óleo que vazara de um navio, e que esse fenômeno era hoje muito comum na costa brasileira.
Quase nada achamos da gente com que nos deparamos outrora, e se encantou com nossas miçangas, colares e contas de rosário. Não sei se estava certo quando instei com Vossa Alteza para que mandasse logo quem entre os índios mais devagar andasse, insistindo no envio de clérigos e sugerindo que, enquanto estes não chegassem, fossem os nativos sendo instruídos pelos dois degredados. A intenção era boa, mas sabe Vossa Alteza quão tortuosa às vezes é a distância entre o propósito e o efeito. A catequização dessa gente parece ter tido a sombra da desídia e do degredo, pois que nem logramos conquistá-la de todo para o reino cristão, por cuja fé o império dilatávamos, nem permitimos que adorasse seus deuses como lhe aprouvesse. Pesa-me dizer a Vossa Alteza que, por obra de todo esse equívoco, acabaram-se dizimando milhões dentre aqueles nativos. E, dos que hoje restam, a maioria é pobre, suja e não tem terras para plantar ou, sequer, para morrer.
A terra onde outrora fincamos a cruz e o estandarte lusitano é hoje um imenso país. Infelizmente essa grandeza, que parece se limitar à geografia, não se espelha nos estratos políticos e administrativos da nação. Peço vênia a Vossa Alteza para, quanto a isso, tomar a nós a culpa, uma vez que pouco avaliamos quem mandamos para cá. Bêbados, vândalos, arruaceiros, corruptos, toda essa laia refinou-se ao longo do tempo, gerando uma espécie sutil de parasita. A corrupção está nela infiltrada como um outro tipo de sangue, que assanha o desejo pelo bem público e suborna todos os que teoricamente se lhe opõem – estes, também, potencialmente corrompidos. Para ter Vossa Alteza uma idéia, no pouco tempo que aqui passamos assistimos a uma epidemia de escândalos envolvendo representantes dos três poderes constituídos, o que nos deu a triste impressão de que neste lugar, por cúmulo da ironia, um ladrão bem pode ser julgado por outro.
O que mais me impressionou neste retorno, e afortunadamente pelo lado positivo, foi o anseio e o gozo com que seus habitantes se entregam ao Carnaval, havendo cidades em que essa festa se prolonga muito além do calendário. Nela abundam mulheres bonitas, que me impressionaram por uma particularidade a que, como não ignora Vossa Alteza, é bastante sensível o ânimo lusitano: a firmeza de suas ancas e bustos. Estes, mesmo em raparigas passadas dos trinta ou mais, ostentam uma opulência e rijeza que desafia os movimentos frenéticos do samba, dança própria da ocasião. Foi-me então explicado que essa maravilha se deve a um plástico chamado silicone. Inserido nas tetas das mulheres, ele as infla e empina ao ponto que se queira, dando-lhes às pomas, ainda as mais exíguas e curtidas, um aspecto volumoso e juvenil.
Foi sob o impacto de tal prodígio, que não conhecêramos nas nativas de há 500 anos, que enfim adentramos as caravelas para a viagem de volta a Portugal. Quando soube do teor desta missiva, um político paulista de sobrenome árabe ofereceu-me certa quantia para que eu não a enviasse a Vossa Alteza. Recusei. Vai esta carta tal como a redigi, isto é, com as críticas, o desencanto e também a euforia que deparamos na terra reencontrada. A despeito dos parasitas que a sangram e empobrecem, ela inegavelmente tem futuro.

            Do vosso súdito e conselheiro,

            Pero Vaz de Caminha.

            (Em "A rosa fenecida", p. 28)

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