Ainda não sei por que me dispus a cursar Medicina. Filho
e sobrinho de professores, sempre estive ligado ao magistério. Comecei dando
aulas particulares de Português na casa dos alunos. Com isso juntei um
dinheirinho, que me permitiu dispensar a mesada do “velho” e comprar meu
primeiro carro – um Fusca usado. Fiquei exultante, pois com ele era mais fácil
arranjar namoradas.
A etapa seguinte foram os cursinhos pré-vestibulares,
nos quais passei a atuar aos 22 anos. Nesse tempo eu lia muito, ensinava outro
tanto e fazia o Científico no velho Liceu Paraibano. Não quis fazer o Clássico,
pois nele não poderia estudar matérias como Química, Física ou Biologia –
essenciais para o vestibular de Medicina. Não me sentia vocacionado, mas esse era
o curso que todos faziam (os outros eram Engenharia e Direito). Envolvido com
as aulas nos cursinhos, e preferindo ler autores literários a estudar os
compêndios da escola, preparei-me mal para o vestibular. O resultado não
poderia ser outro: uma retumbante reprovação.
Aqui é preciso dar um corte e voltar aos idos de 1970.
Um carro segue pela estrada que liga Campina Grande a João Pessoa. É noite. No
automóvel estão dois homens colados ao radinho do veículo. São meu pai e meu
tio, que esperam a divulgação dos resultados do vestibular da UFPB. De repente
o repórter começa a ler a relação dos que passaram (hoje, com a internet,
poucos têm ideia da tensão que isso representava). Vai lendo, lendo, e nada de aparecer
meu nome. Quando a leitura chega ao fim, meu tio (que era padre) recrimina meu
pai por não ter me matriculado num cursinho. Ele atribuía o fracasso a essa
omissão paterna (de forma injusta, como se viu) e assume ali um compromisso: “Eu
vou pagar o cursinho dele.”
Isso mudou tudo. Eu tinha por esse tio, além do afeto,
um respeito por assim dizer eclesial. Se ele ia pagar meu cursinho, eu estava
moralmente comprometido e não poderia decepcioná-lo. A consciência desse dever
me transformou. Incutiu-me a responsabilidade de estudar, compensando o
desleixo de anos anteriores. Depois de matriculado, fiz um programa de estudos e
a ele me devotei com uma tirânica disciplina. Lembro-me de que não faltei a uma
aula sequer. O resultado não poderia ser outro: fiquei em 7º lugar no
vestibular geral (que englobava os cursos da área de Saúde) e em 23º na seleção
específica para Medicina. Um feito para quem no ano anterior tinha sido
reprovado.
Os primeiros anos de curso foram tranquilos, pois não exigiam
muito. Era possível conciliá-los com as aulas de Português (eu não me desligara
das atividades nos cursinhos). Matérias como Anatomia, Histologia ou Fisiologia
pouco sugeriam a vivência de um futuro profissional da área médica. A situação
mudou quando passei a cursar disciplinas que demandavam a ida aos hospitais (Semiologia,
Técnica Cirúrgica, Clínica Médica e outras).
Dizem, com razão, que o aprendizado da Medicina se faz
no contato com os doentes. É preciso estar diuturnamente junto aos leitos. Quem
não se ajusta a essa rotina não tem vocação e deve abandonar o barco (antes que
nele se afundem o pretenso médico e algum moribundo que tenha o azar de lhe
cair nas mãos). Comecei a me compenetrar dessa verdade quando, no Hospital
Santa Isabel, me vi incumbido de fazer anamneses e auscultas. Logo fui vendo
que não eram aqueles sinais que eu nascera para interpretar. Preferia outros – menos
tangíveis, porém mais afeitos à minha inteligência e, sobretudo, à minha
sensibilidade.
Com o tempo, a crise foi se aprofundando. Era cada vez
menor a vontade de ir ao hospital, mas eu continuava a fazer isso para não
decepcionar a família (sobretudo meu pai, que me queria médico). Respirava quando
saía dali para, ainda vestindo branco, adentrar a sala de aula e ministrar o
pouco que sabia sobre língua portuguesa e literatura. Aguentei o quanto pude, até
que um dia veio a bomba.
Não sei bem sei se essa é a metáfora, mas uso-a para
figurar os disparos cardíacos ocorridos naquele dia. Lembro-me de que senti uma
sensação estranha, um esvaimento parecido com o que antecede a morte – se não
fosse a própria morte. Disse-me um colega que fiquei muito pálido e lhe pedi
que medisse a minha pulsação: 140 batimentos por minuto. O assunto da aula era
choque, e me lembro de ter ouvido o professor dizer: “Choque é má perfusão sanguínea”.
Curiosamente, essa definição se enquadrava no que eu sentia. Faltava-me o
sangue, e o coração parecia que ia parar. Encurtando a história: saí disparado
da sala e ao hospital nunca mais voltei. Conforme me foi explicado depois, eu tinha
sofrido um processo de somatização.
Resistira o quanto pudera, fazendo o curso a contragosto, até que meu
organismo reagiu jogando no sangue adrenalina, cortisona e outras deletérias substâncias.
Quando cheguei em casa, comuniquei à família a minha
resolução. Iria deixar o curso de Medicina naquele dia e me transferir para o
de Letras. Olharam-me com alguma perplexidade, mas, curiosamente, o menos
surpreso era o meu pai. Depois ele me confessou que não tinha dúvida de que essa
mudança ia ocorrer. Sabia das propensões do filho, a quem ele (também professor
de Português) muitas vezes transferira a clientela que o procurava.
Trocar Medicina por Letras, ainda mais tendo iniciado
o quarto ano, parecia àquela época uma prova de insensatez. Ouvi de colegas comentários
do tipo: “Só faltam dois anos para terminar. Você vai morrer de fome.” Ou: “Letras
é curso de moça.” Bem, de fome não morri. E quanto à minha orientação sexual,
garanto que não sofreu nenhum abalo.
Vez por outra conto essa história a alunos meus que estão na encruzilhada do vestibular. Muitos sofrem com dúvidas sobre o curso que devem escolher, e acho que o meu testemunho pode ajudá-los. Encorajo-os a sondar honestamente o seu interior e seguir a vocação. Dentro de cada um de nós existe uma vozinha que chama (“vocação” vem de “vocare”, quer dizer chamar), conclamando-nos a não desprezar nossas aptidões. Se somos o que fazemos, fazer aquilo para o qual nascemos nos legitima como seres humanos.
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