domingo, 7 de março de 2021

Mudança de curso

Ainda não sei por que me dispus a cursar Medicina. Filho e sobrinho de professores, sempre estive ligado ao magistério. Comecei dando aulas particulares de Português na casa dos alunos. Com isso juntei um dinheirinho, que me permitiu dispensar a mesada do “velho” e comprar meu primeiro carro – um Fusca usado. Fiquei exultante, pois com ele era mais fácil arranjar namoradas.  

A etapa seguinte foram os cursinhos pré-vestibulares, nos quais passei a atuar aos 22 anos. Nesse tempo eu lia muito, ensinava outro tanto e fazia o Científico no velho Liceu Paraibano. Não quis fazer o Clássico, pois nele não poderia estudar matérias como Química, Física ou Biologia – essenciais para o vestibular de Medicina. Não me sentia vocacionado, mas esse era o curso que todos faziam (os outros eram Engenharia e Direito). Envolvido com as aulas nos cursinhos, e preferindo ler autores literários a estudar os compêndios da escola, preparei-me mal para o vestibular. O resultado não poderia ser outro: uma retumbante reprovação.   

Aqui é preciso dar um corte e voltar aos idos de 1970. Um carro segue pela estrada que liga Campina Grande a João Pessoa. É noite. No automóvel estão dois homens colados ao radinho do veículo. São meu pai e meu tio, que esperam a divulgação dos resultados do vestibular da UFPB. De repente o repórter começa a ler a relação dos que passaram (hoje, com a internet, poucos têm ideia da tensão que isso representava). Vai lendo, lendo, e nada de aparecer meu nome. Quando a leitura chega ao fim, meu tio (que era padre) recrimina meu pai por não ter me matriculado num cursinho. Ele atribuía o fracasso a essa omissão paterna (de forma injusta, como se viu) e assume ali um compromisso: “Eu vou pagar o cursinho dele.”

Isso mudou tudo. Eu tinha por esse tio, além do afeto, um respeito por assim dizer eclesial. Se ele ia pagar meu cursinho, eu estava moralmente comprometido e não poderia decepcioná-lo. A consciência desse dever me transformou. Incutiu-me a responsabilidade de estudar, compensando o desleixo de anos anteriores. Depois de matriculado, fiz um programa de estudos e a ele me devotei com uma tirânica disciplina. Lembro-me de que não faltei a uma aula sequer. O resultado não poderia ser outro: fiquei em 7º lugar no vestibular geral (que englobava os cursos da área de Saúde) e em 23º na seleção específica para Medicina. Um feito para quem no ano anterior tinha sido reprovado.

Os primeiros anos de curso foram tranquilos, pois não exigiam muito. Era possível conciliá-los com as aulas de Português (eu não me desligara das atividades nos cursinhos). Matérias como Anatomia, Histologia ou Fisiologia pouco sugeriam a vivência de um futuro profissional da área médica. A situação mudou quando passei a cursar disciplinas que demandavam a ida aos hospitais (Semiologia, Técnica Cirúrgica, Clínica Médica e outras).

Dizem, com razão, que o aprendizado da Medicina se faz no contato com os doentes. É preciso estar diuturnamente junto aos leitos. Quem não se ajusta a essa rotina não tem vocação e deve abandonar o barco (antes que nele se afundem o pretenso médico e algum moribundo que tenha o azar de lhe cair nas mãos). Comecei a me compenetrar dessa verdade quando, no Hospital Santa Isabel, me vi incumbido de fazer anamneses e auscultas. Logo fui vendo que não eram aqueles sinais que eu nascera para interpretar. Preferia outros – menos tangíveis, porém mais afeitos à minha inteligência e, sobretudo, à minha sensibilidade.

Com o tempo, a crise foi se aprofundando. Era cada vez menor a vontade de ir ao hospital, mas eu continuava a fazer isso para não decepcionar a família (sobretudo meu pai, que me queria médico). Respirava quando saía dali para, ainda vestindo branco, adentrar a sala de aula e ministrar o pouco que sabia sobre língua portuguesa e literatura. Aguentei o quanto pude, até que um dia veio a bomba.

Não sei bem sei se essa é a metáfora, mas uso-a para figurar os disparos cardíacos ocorridos naquele dia. Lembro-me de que senti uma sensação estranha, um esvaimento parecido com o que antecede a morte – se não fosse a própria morte. Disse-me um colega que fiquei muito pálido e lhe pedi que medisse a minha pulsação: 140 batimentos por minuto. O assunto da aula era choque, e me lembro de ter ouvido o professor dizer: “Choque é má perfusão sanguínea”. Curiosamente, essa definição se enquadrava no que eu sentia. Faltava-me o sangue, e o coração parecia que ia parar. Encurtando a história: saí disparado da sala e ao hospital nunca mais voltei. Conforme me foi explicado depois, eu tinha sofrido um processo de somatização.  Resistira o quanto pudera, fazendo o curso a contragosto, até que meu organismo reagiu jogando no sangue adrenalina, cortisona e outras deletérias substâncias.

Quando cheguei em casa, comuniquei à família a minha resolução. Iria deixar o curso de Medicina naquele dia e me transferir para o de Letras. Olharam-me com alguma perplexidade, mas, curiosamente, o menos surpreso era o meu pai. Depois ele me confessou que não tinha dúvida de que essa mudança ia ocorrer. Sabia das propensões do filho, a quem ele (também professor de Português) muitas vezes transferira a clientela que o procurava.  

Trocar Medicina por Letras, ainda mais tendo iniciado o quarto ano, parecia àquela época uma prova de insensatez. Ouvi de colegas comentários do tipo: “Só faltam dois anos para terminar. Você vai morrer de fome.” Ou: “Letras é curso de moça.” Bem, de fome não morri. E quanto à minha orientação sexual, garanto que não sofreu nenhum abalo.   

Vez por outra conto essa história a alunos meus que estão na encruzilhada do vestibular. Muitos sofrem com dúvidas sobre o curso que devem escolher, e acho que o meu testemunho pode ajudá-los. Encorajo-os a sondar honestamente o seu interior e seguir a vocação. Dentro de cada um de nós existe uma vozinha que chama (“vocação” vem de “vocare”, quer dizer chamar), conclamando-nos a não desprezar nossas aptidões. Se somos o que fazemos, fazer aquilo para o qual nascemos nos legitima como seres humanos. 

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