Já fui um adepto da corrida. Comprei o livro de Kenneth Cooper e o li com aplicação, procurando seguir seus conselhos para melhorar a capacidade cardiorrespiratória e ganhar mais anos de vida. Costumava acordar cedo para trotar cinco ou mais quilômetros na calçadinha da praia. Quando cursava pós-graduação no Rio participei da corrida Leblon-Leme e não fiz feio, embora terminasse o percurso esbofado como um touro de arena antes do golpe fatal.
A corrida se tornou para mim uma espécie de vício; era
impossível abdicar do prazer propiciado pela endorfina, que chamei num texto de
“vinho do suor” (nesse tempo eu queria ser um literato e achava que só chegaria
a isso se produzisse imagens esdrúxulas). Com o tempo, fui aumentando a
frequência das corridas e estendendo o trajeto. Os joelhos se ressentiram do
excesso. Certa manhã, depois de um exercício mais puxado, senti uma dor violenta
no joelho esquerdo e tive que parar. Voltei para casa mancando e tratei de
procurar um médico, que foi curto no diagnóstico: lesão meniscal. Passei por fisioterapia
e infiltração, mas o que resolveu mesmo foi a mesa cirúrgica.
Após essa traumática experiência, deixei a corrida e passei
a caminhar. Com o tempo fui me dando conta dos benefícios dessa prática mais
modesta, que exercita o copo e ao memo tempo o poupa dos excessos. O próprio Cooper,
num dos seus últimos livros, desencoraja as corridas e aconselha que se
caminhe. Tenho confirmado a sabedoria desse conselho. No ato de caminhar é
menor a preocupação com o desempenho, o que libera a mente para reflexões ou simples
devaneios. Daí ele ser frequente em filósofos e escritores.
Rousseau, por exemplo, costumava fazer longas
caminhadas. Durante elas amadurecia as ideias que iria incorporar ao seu
sistema filosófico – ideias sobre a natureza humana, que ele considerava a
priori boa, e a importância da educação para ajustar o homem à
sociedade. Montaigne também percorria longos trajetos antes de se enfurnar
na sua torre e escrever os Ensaios. Machado de Assis, geralmente acompanhado
por Dona Carolina, preferia um passeio pelas calçadas do Cosme Velho após o
jantar.
As caminhadas não precisam ocorrer na praia ou em
algum local ermo. Podem acontecer mesmo no burburinho da cidade, entre gente
apressada e automóveis pestilentos. Nesse caso pode-se nadar (ou melhor, andar)
contra a corrente, sem pressa, flanando. Foi Walter Benjamin quem chamou a
atenção para o flâneur; a partir de escritos baudelairianos, ele cunhou esse termo
para designar o misto de andarilho e observador que vaga pelas grandes cidades.
Flanar é andar a esmo. É poetar com os pés. É ser um
peregrino sem promessas, a não ser a de voltar ao ponto de partida depois de
distrair o espírito com a gratuidade do percurso. Quem flana se liberta por um
tempo de deveres e obrigações. Vai por ir, e não para cumprir um roteiro com
uma meta específica. A mente também vagueia, deixando que os pensamentos
fluam sem aparente conexão. Uma ideia puxa outra ao sabor do inconsciente, uma
imagem desencadeia outra estimulada pelo que é visto ao longo do
percurso.
Seguir por uma rua que a gente costumava percorrer
desperta recordações que alegram ou entristecem. Outro dia, num dos meus
passeios, deparei-me com uma casa onde moravam umas garotas que atraíam os
meninos do bairro. Eram três, uma mais loura e espevitada do que as outras. A
casa tem agora paredes enegrecidas, parte do reboco desfeita e mato crescendo
onde antes foi o jardim. Como estariam os que nela moravam? Voltei para casa num
vagar melancólico que me fez meditar sobre a inclemente passagem do tempo. Coisa
de flâneur.
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