O que não falta são livros que buscam ensinar a escrever. Não ensinam. Os melhores dão algumas boas dicas e têm a honestidade de mandar o leitor fechá-los e praticar. Assim como samba não se aprende na escola, a escrita não se aprende em guias de redação. Isso não quer dizer que não sejam úteis. Uma das vantagens deles é trazer depoimentos de escritores e mostrar como os problemas de quem se propõe a escrever são comuns a todos, o que serve de estímulo aos iniciantes.
Li
alguns desses livros e confesso que poucos me impressionaram tanto como “Palavra
por palavra”, de Anne Lamott (Sextante). Adquiri-o meio por acaso, numa pequena
livraria do aeroporto de Guarulhos antes de um voo para João Pessoa. Eu estava
na sala de espera quando percebi que terminaria “O espião que saiu do frio”
antes do fim da viagem. Não teria mais com que distrair minha fobia de voar. Explico:
quando viajo de avião, a leitura é meu Rivotril (outros diriam “meu Lexotan”,
ou “meu terço”); absorvo-me nela da decolagem ao pouso.
Vendo
que não teria o que ler, corri ao quiosque mais próximo (já se fazia fila no
portão de embarque) e comprei o primeiro livro com que me deparei. Era o de
Anne Lamott. A obra me conquistou desde a
introdução sincera e divertida, em que ela mistura lembranças da infância com impressões
de suas primeiras leituras. Destaca a influência que recebeu do pai, também escritor
e morto precocemente de câncer. Refere a sua ligação com outros escritores e o
desejo de, por meio da literatura, transcender os limites do ambiente provinciano
em que foi criada.
A obra tem como subtítulo ”Instruções
sobre escrever e viver”. Nada mais exato, pois a autora aborda sobretudo a
dimensão existencial da escrita. Questiona o sentido e o valor que ela tem,
buscando destruir mitos como o de que a publicação é a grande meta do escritor e
pode lhe trazer dinheiro e glória. “Se o que você tem em mente é fama e
fortuna, já vou avisando que a publicação o levará à loucura”, adverte. Mais
importante do que publicar é fazer da escrita fonte de autoconhecimento e um meio
de investigar (e revelar aos outros) nossa humanidade. “O objetivo da maior
parte dos bons textos parece ser revelar, sob uma luz ética, quem somos”.
Para
Lamott o escritor tem que dizer a verdade, deixar emergir o inconsciente, a
emoção, e se comprometer moralmente com aquilo em que acredita. Isso não quer
dizer que ele deva “edificar” os leitores. “Uma posição moral não é uma
mensagem, e sim uma preocupação passional dentro de você”, explica. O móvel
dessa paixão é o desejo de aclarar as zonas sombrias que existem dentro de nós.
“Quando as pessoas iluminam um pouco o próprio monstro, descobrem como ele se
parece com o dos outros”; cabe ao escritor revelar esses desvãos que nos
amedrontam e angustiam. O fato de saber que eles são comuns a todos nos traz
algum alívio.
“Palavra por palavra” é um desses livros indispensáveis para os que pretendem escrever. Encoraja a que se persista nesse propósito com intensidade e doação -- “por causa do espírito”. “A escrita e a leitura reduzem nossa sensação de isolamento. Aprofundam, alargam e expandem nossa noção da vida: alimentam a alma”, resume a autora.
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