domingo, 1 de janeiro de 2023

Estrelas dançarinas

A Copa que o mundo vem acompanhando demonstra o fascínio que o futebol exerce na maior parte das pessoas. Não por acaso, ele é conhecido como o esporte das multidões. A televisão tem sido pródiga em mostrar a euforia (ou o abatimento) das torcidas em países de vários continentes. Não há dúvida de que seus habitantes veem os jogadores como guerreiros a quem se incumbiu a tarefa de representar a pátria.  

Concorre para tal interesse a própria natureza desse esporte. Dizem que o futebol não tem lógica, mas sempre aparece uma razão para um time ganhar ou perder. Logo, se existe uma relação de causa e consequência, há lógica. A crônica esportiva confirma isso. Ela pode enfatizar as qualidades de um time durante a partida, mas se ele perder logo os comentaristas encontrarão uma justificativa para a derrota. Em resumo: a lógica do futebol está no gol. Como na vida, o que importa é o resultado. 

Se o que conta é a meta, o objetivo, o futebol deveria se caracterizar como um esporte pragmático, no qual a fria tática prevalece sobre o improviso. Mas curiosamente não é assim. Nesse esporte conta muito o valor individual, que se mede pela capacidade de o atleta driblar, dar “lençóis”, meter uma “caneta” no adversário.  O drible é o show à parte, a negaça que torna mais atraente a conquista.   

Ninguém encarnou isso melhor do que Garrincha, que fez do drible a sua marca registrada. Muitos iam aos os estádios só para vê-lo entortar os adversários. Com ele o futebol se jogava direito por pernas tortas.

Conta-se que certa vez fintou vários adversários, e ao chegar diante do goleiro recuou alguns metros. Teve então que refazer os dribles até se deparar de novo com o “guardião da meta” e novamente recuar. Só na terceira investida consumou o ato, empurrando a bola para o fundo das redes. Ao final da partida o técnico lhe perguntou por que ele não tinha feito o gol logo da primeira vez, já que podia ter sido desarmado e perdido a oportunidade de empatar o jogo. Mané então lhe respondeu candidamente: “É que o goleiro não queria abrir as pernas.”

 Para ele não bastava o resultado, mesmo sendo isso que decidia a partida. Contava também, ou sobretudo, a forma como se definia o placar. Ou seja: contava o estilo. Associar a prática à beleza, que se revela por um estilo, é a principal característica da arte. Garrincha era por excelência um artista da bola.

Fala-se que o futebol se tornou “científico”, segue esquemas predeterminados por técnicos que ditam o movimento dos jogadores. E que nesse contexto um Garrincha não teria vez. Será isso verdade? Quem acompanhou a atuação de atletas como Vinícius Jr. ou Richarlison, que faziam embaixadinhas com a cabeça ou envolviam em “lençóis” precisos os adversários, viram neles uma reedição do espírito do Mané.

A arte desses dois atletas foi uma vitória de Dioniso sobre o rigor apolíneo inscrito nas regras de bem atuar.  Sem esquecer a eficiência, eles fizeram da bola um brinquedo que diverte e encanta. Como se não bastasse, coroavam a feição dionisíaca do seu desempenho com uma saltitante coreografia, fazendo-se “estrelas dançarinas” na simétrica constelação do futebol. O fato de o Brasil ter sido desclassificado não invalida o espetáculo que eles nos propiciaram.

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