Sempre fui um folião enrustido. Como tinha dificuldade de aderir à folia, a família e os amigos me consideravam anticarnavalesco -- o que não é verdade. Brinco por dentro, com uma espécie de euforia espiritual. Pode parecer contraditório falar em espírito a propósito de uma festa que celebra a carne, mas a contradição é apenas aparente. Carne e espírito são no fundo uma coisa só. O desejo é físico, mas pode se sublimar, e nesse caso a alma se funde com o corpo. Freud que o diga.
Carnavalescos como eu têm dificuldade
de cair no samba, no passo ou no frevo. Gostam mais de olhar, imunes ao tumulto
dos clubes e das ruas. São diferentes
dos que rejeitam o Carnaval com o argumento de que nessa ocasião o homem se
animaliza. Animal ele nunca deixou de ser – um animal soterrado por séculos de
civilização. A festa é o meio de deixar emergir a “fera” aprisionada. Ou isso,
ou a neurose, a psicose e outros males a que o progresso nos conduz. É preciso
vez por tirar a máscara de bons moços.
O carnavalesco enrustido compreende a necessidade
de liberar o que há em nós de instintivo. Não só compreende como sente um pouco
de inveja dos que fazem isso sem inibições, entregando-se sem reservas à
alegria. O que ele tem não é moralismo, é pudor, cuja manifestação visível é a
timidez. Ao perceber isso, os outros o provocam e às vezes o humilham.
Não
adianta. Nada o faz balançar o corpo, nem mesmo os acordes iniciais de “Vassourinhas"
(essa música sempre me pareceu um dos maiores símbolos do Carnaval pelo seu
poder de contagiar as massas; nos clubes ou nas ruas, quando tudo parece
monótono, ela sempre dá alguma voltagem à animação).
A tendência do enrustido é ver o
Carnaval como nostalgia. Nostalgia do presente, pelo momento que escapa, e a
óbvia nostalgia do passado, pela lembrança de outros carnavais. Na sua
imaginação, eles eram melhores do que os de hoje.
É
como se naquele tempo não houvesse tanta agitação ou maldade e fosse possível
brincar sem maiores riscos. As mulheres pareciam mais pudicas; e as músicas,
cheias de um romantismo que convidava aos devaneios de um grande amor (mesmo
que esse amor, como diz a letra da canção, desapareça com a fumaça). Para o
nostálgico, que é parente do melancólico, tudo que se distancia da realidade é
melhor.
Crença ilusória. Os Carnavais do
passado não são diferentes dos de agora. Cada época imprime à festa a sua
marca, mas o significado profundo permanece o mesmo. Quando eu era menino,
costumava ouvir relatos de mortes nos salões devido aos porres de
lança-perfume; ou de agressões, provocadas por ciúme, que terminavam em
assassinatos. Sob o aparente romantismo latejava a febre das grandes paixões,
potencializadas pela música e as drogas.
Vou
assistir à festa pela televisão, de olho também na crise que o País atravessa.
Espero que ela não tenha a força de inibir as pessoas que veem na festa a
possibilidade de esquecer por uns dias o vandalismo nos Três Poderes e o
morticínio dos ianomâmis. O País está marcado por escândalos como esses e por
outras chagas, como a intensa desigualdade social e a violência contra as
mulheres. É preciso uma dose grande de esquecimento e alegria para depois, com
a lucidez possível, enfrentar o que vem por aí.
Nenhum comentário:
Postar um comentário