Cerca de quatro
anos pós a morte do marido, D. Zulmira começou a esquecer as coisas. Não sabia
onde guardara roupas, sapatos ou utensílios da casa. Letícia, a filha caçula, chegou
a alertar a irmã:
– E se ela deixar de tomar os remédios para pressão?
– Precisamos ficar atentas. Pode ter um acidente vascular cerebral... –
respondeu Soraia, que já pensava na possibilidade de contratarem uma cuidadora.
Aos lapsos de memória, acrescentavam-se a tristeza e a apatia. D.
Zulmira passava horas numa poltrona da sala, o olhar perdido. Recusava até que
ligassem a televisão. Não lhe empolgavam mais as novelas nem os programas gastronômicos,
dos quais chegara a copiar receitas para agradar o marido. Valfredo era um
gourmet, e a mulher vez por outra lhe preparava comidas diferentes.
Para ver se distraía a mãe, Soraia
propôs que se mostrasse a ela fotos da família. Sobretudo aquelas em que aparecia
com Valfredo, para lembrar-lhe o tempo que passara ao lado do marido. Eram
muito bem casados, e certamente as imagens da vida em comum concorreriam para
reavivar-lhe a memória e deixá-la mais animada.
Assim foi feito. Letícia tirou da gaveta do velho guarda-roupa a caixa
em que dormiam, já um pouco amareladas, fotografias da família. Havia muitas
dos dois juntos, algumas tiradas quando as filhas ainda nem tinham nascido. O
casal aparecia em festas juninas, risonhos, ou enlaçados em bailes de Carnaval.
A garota fez uma seleção das que melhor traduziam o convívio amoroso dos dois.
Numa tarde em que D. Zulmira seguia a rotina de nada fazer e ficar
olhando para o tempo, Letícia sentou-se junto dela e começou a mostrar as
fotos. Tinha feito uma seleção cronológica, apresentando primeiro as do tempo
em que namoravam. Depois vinham as do período em que eram noivos, e por fim as
de casados.
D. Zulmira olhou de início sem curiosidade, as imagens pareciam não
impressioná-la. Mas a partir de certo momento seus olhos começaram a brilhar, e
o rosto adquiriu uma expressão intrigada. Olhou para a filha como se não entendesse
o que via. Letícia também não compreendeu essa reação, e muito menos quando a
mãe lhe fez a pergunta:
– Quem é essa que está com seu pai?
– Quê?! Quem poderia ser, mãe? É a senhora!
– Não sou eu! Tire esses retratos daqui!
A garota não sabia o que fazer. Chamou Soraia e lhe explicou o que estava
acontecendo. A outra ficou surpresa. Não era ela?! Pediu à irmã que recolhesse
as fotos e as levasse para a gaveta do guarda-roupa. Antes que Letícia fizesse
isso, a mãe pediu para vê-las de novo. Como se quisesse se certificar.
– Não sou eu! Seu pai está com outra. Agora fiquei sabendo que ele tinha
uma amante...
As duas se olhavam, perplexas. D. Zulmira até então esquecia objetos ou nomes
de pessoas. Agora parecia não se lembrar do próprio rosto. No dia seguinte,
enquanto tomavam café, viram a mãe se dirigir à sala com uma tesoura. Assustaram-se
e ficaram imaginando qual seria o seu propósito.
Depois de se sentar na poltrona onde costumava passar o dia, D. Zulmira
falou:
– Vão buscar aqueles retratos.
– Para que a senhora quer? – assustou-se Letícia.
– Você vai ver. Quero os retratos aqui.
A moça obedeceu e pouco depois voltou com a caixa. Antes de entregá-la, pediu:
– Não vá, por favor, fazer nenhuma besteira.
D. Zulmira abriu-a e começou retirar as fotos. Olhava-as uma por uma e
confirmava:
– Não sou eu. Não tenho esse cabelo, nunca usei essas roupas nem esses
brincos.
Pegou então a tesoura e começou a cortá-las para delas extrair “a outra”
que ocupava o seu lugar. As filhas tentaram detê-la, mas logo viram que seria
impossível. A mãe tinha uma expressão raivosa e parecia capaz de agredir quem
procurasse impedi-la.
D. Zulmira colocava as partes cortadas numa mesinha contígua à sua poltrona.
Com o tempo, era grande o número de recortes que a mostravam em situações
diversas, vestindo diferentes roupas e com variadas expressões fisionômicas – ora
risonha, ora atenta, ora plácida, olhando para alguém que não se conseguia ver.
Nas caixas restaram as fotos mutiladas, em que também não se sabia quem
Valfredo fitava ou tinha nos braços.
Terminada a obra, ela fechou o recipiente e deu um suspiro, como se
tivesse passado por algo muito incômodo e enfim sossegasse.
Letícia apontou para os recortes em cima da mesa e perguntou:
– O que a gente faz com eles?
– Pode esconder ou dar fim. Para mim tanto faz.
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