Quando
cursava o Mestrado na UFRJ, inscrevi-me na disciplina “Carnavalização e Literatura”,
ministrada por Affonso Romano de Sant’Anna. Para a avaliação final apresentei o texto
abaixo, que aparece aqui resumido e, por economia de espaço, sem as referências
bibliográficas.
Certamente
em função do tema que desenvolve – uma versão de como se teria urdido o mito de
Jesus Cristo –, Waldemar Solha opera nessa obra com alguns dos recursos que
inauguraram a vertente dialógica da literatura. O presente trabalho se propõe a
apontar alguns desses recursos, ligados ao diálogo socrático e à sátira
menipeia, observando-lhes a pertinência linguística, em função do plano
temático, e a possível eficácia literária.
O
primeiro deles é o “dialogismo”, formulado segundo princípios teóricos de Mikhail
Bakhtin. Os quatro evangelistas discutem o seu Cristo num teatro, cuja forma de
estruturação é basicamente o diálogo. O engendramento do Libertador vai-se
fazendo aos poucos, pela intervenção de cada um. Trata-se afinal de buscar a
verdade, e esta (conforme postula Sócrates) não pode nascer de um só homem – está
entre os homens.
Outro recurso é a “presença de heróis ‘ideológicos’”.
Os evangelistas se opõem por palavras, ideias, conceitos. A aventura deles,
pois, é em larga medida intelectual – mais propriamente, da imaginação,
conforme refere Lucas na página 31: “A cópia fotográfica disto que chamamos
realidade não conseguiria jamais, eu sei disso, trazer à superfície este nosso
Messias. Ele terá de ser o resultado de nossa disposição à mediunidade (...)
que foi concedida aos artistas”.
Para
destruir a dominação romana, os quatro não vão pegar em armas ou pregar em
praça pública. Vão ativar reminiscências, estabelecer analogias no confronto
dos diversos textos sagrados. O propósito deles, à maneira do que havia no
diálogo socrático, é uma “procura e experimentação” da verdade, que se
confundiria com o Verbo, a Sabedoria, o Cristo. Daí esse propósito envolver
necessariamente outro recurso, a “síncrise” (oposição, antítese). Os
protagonistas divergem sobre aspectos exteriores, como o porte físico e a cor
dos olhos, e sobre a própria natureza da mensagem que o Messias pregará.
Deve-se
entender que o questionamento, no romance, antes de dizer respeito ao significado
do Cristo, refere-se à existência ou não desse mesmo Cristo. Solha simula o
diálogo socrático no processo de engendramento do Salvador, mas advoga a tese
de que o Cristo não existiu historicamente. Seria o Messias um dos mitos
solares criados, de tempos em tempos, pela imaginação de artistas sensíveis ao
drama do povo.
Importa salientar que a simulação do
recurso dialógico, como forma prevalente de estruturação da narrativa, não foi
de modo algum gratuita. O romance enfoca um momento de ruptura da totalidade
psicoemocional do homem, qual seja, o da decadência clássica e primórdios de
uma nova religião. E o cristianismo instaurou a percepção e a expressão
dramáticas, opostas à univocidade da epopeia e da tragédia. No drama, cuja
essência é a tensão, exerce papel capital o diálogo. Privilegiando-o como forma
de atuação dos evangelistas, o texto se harmoniza com o espirito em que se deu
o advento cristão.
Vejamos
agora recursos ligados à sátira menipeia; criada pelo escritor grego Menipo,
ela procede à crítica a atitudes mentais ou de comportamento. Entre as
caraterísticas desse gênero, merece destaque o chamado “fantástico experimental”.
Bakhtin explica esse traço como “a observação feita de um ponto de vista
inusitado (...), de onde a escala dos fenômenos é bruscamente modificada”.
Trata-se de uma forma de realçar o grotesco, o disforme, o desproporcional; o
artista expressa a realidade por meio de insólitos pontos de vista.
No
romance, tal efeito se realiza em larga medida pelo uso de elementos tomados à
linguagem cinematográfica. Isso permite multiplicar os ângulos de visão
“inusitados” mediante os quais o artista transpõe o real, o que torna possível
fundir todas as distâncias e todos os tempos. Como um dos objetivos do narrador
é atualizar os instantes, já que a vigência dos mitos é atemporal, o recurso a
processos cinematográficos, além do que representam por si, têm um valor quase
simbólico.
São
abundantes no texto passagens que reproduzem técnicas do cinema. A título de exemplificação,
pincemos duas: “Lucas... recuou com tal rapidez, que sua posição anterior ficou
ainda um momento recuando no ar....” (p. 28); “Eliseu, sendo visto de cima para
baixo por ele (Elias), saiu correndo, aturdido com a ligação daquela travessia
com a de Moisés, decrescendo na margem do Jordão, rapidamente se encolhendo na
distância, sua voz diminuindo sensivelmente, ele gritando ‘Meu pai: Carros de
Israel e seus cavaleiros!’” Note-se como, neste último exemplo, o efeito de plongée
instaurado com o olho/câmara de Elias é acentuado pelo uso repetido do
gerúndio.
Mas
a influência do cinema não se manifesta somente no visualismo de algumas
imagens. A própria concepção do livro é cinematográfica, pois ele aparece como
uma montagem de diversos tempos e personagens históricos. A partir do diálogo
dos evangelistas, espinha dorsal da narrativa, acumulam-se citações,
descrições, confissões autobiográficas, mesclando-se o verbal com o icônico, a
imaginação com a realidade, Jerusalém com o Brasil.
O
resultado não é só um texto verbal, é um filme. E como não, se tudo é cinema?
Se o Homem não é outro senão o que “fora localizado a partir de um fotograma
qualquer, perdido no meio do rolo do filme inteiro que, segundo os cálculos
aproximados de Einstein, tem cerca de 200 bilhões de anos-luz de extensão”? (p.
59)
Outro
recurso ligado à sátira menipeia que aparece no romance é a “incorporação do
fantástico de aventura”. Tal expediente decorre da própria matéria de que o
romancista se apropria, representada pelo cruzamento entre a história e a
lenda. Reconstituindo os passos de Ciro, Jacó, Moisés, o narrador como que
revive os mitos, apresentando-os nos momentos de prova pelos quais teriam
sobrevivido no imaginário popular. Nessas ocasiões o fantástico se confunde com
o simbólico, pois aí se representam valores e se realizam desígnios que
remontam ao começo dos tempos – à voz dos profetas.
O
fantástico aparece também nos desvarios apocalípticos dos evangelistas, Mateus
sobretudo, que vivem na expectativa da destruição de Jerusalém. A narrativa é pontuada
pela tensão desses momentos, nos quais vida e morte, passado e presente,
criação e escatologia se alternam e confundem. Quanto a isso, pois, o texto
parece obedecer a um secreto ritmo carnavalizador – o “pathos da decadência e
substituição, da morte e renascimento”.
Citemos,
por fim, a chamada “fusão de discursos”. Os argumentos de que Solha lança mão
para provar a sua “tese” sobre o Cristo têm variada proveniência: livros
sagrados, textos de literatura, obras historiográficas. E têm sobretudo um
fundamento popular: a crença pagã na “festa do sol renascente”, que acorre por
ocasião do solstício de inverno. Nessa data, “o Sol (...) aparece de volta,
depois de um longo inverno, para nos salvar do Mal e das Trevas” – imagem do
que, para o homem, representa a vinda do Salvador.
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