quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Devaneios sobre a cama


               Alguém já disse que a cama é um móvel metafísico, pois nela o indivíduo nasce, ama e morre. Vejo-a mais como um móvel físico, em que a gente dorme para aliviar os incômodos do corpo.

         A cama é o lugar do repouso, da meditação, e também da preguiça. A preguiça, como se sabe, é um dos pecados capitais. Deve ser por isso que, nos claustros e conventos, tendia-se a evitar as camas confortáveis. Os religiosos dormiam num estrado duro para que o corpo não se acostumasse ao conforto e viesse a amolecer. Imagino que, em sonho, supunham estar sobre um colchão fofo, desses a que o corpo lascivamente se amolda.

         O homem primitivo dormia no chão, sobre pedra, areia, grama. Uma das vantagens disso é que não sofria da coluna. Certamente alguém, sentindo a maciez da grama, resolveu cortá-la em tufos e os pôr num saco ou num envoltório semelhante. Assim nasceu o colchão, ou um protótipo primitivo dele. Embora espetasse um pouco, era um avanço em relação à superfície pedregosa. A partir daí, nosso antepassado veio a dormir não apensas por necessidade como também por prazer.

      Com o hábito de ficar na cama, ele começou a dedicar boa parte do tempo à reflexão e ao devaneio, o que levou ao desenvolvimento da filosofia e da arte (da filosofia até Aristóteles, para quem a caminhada estimulava o pensamento). Passou também a pensar mais nas mulheres – a delicadeza dos traços, a melodia da voz, a graça do andar. A partir dessa percepção, a mulher foi se transformando de simples objeto sexual em musa erótica. Mas levou tempo até que deixasse de ser puxada pelos cabelos e levada para o fundo da caverna para fazer amor. Essa prática só teria mesmo fim com o aparecimento dos primeiros cabeleireiros.  

       A cama predispõe à inação e a tudo que ela acarreta. Deitado, o indivíduo consome menos calorias, tende a engordar e ser vítima das chamadas doenças da civilização. Mas a verdadeira doença não é do corpo: é do espírito, que tende a erodir à medida que fraqueja o impulso de se levantar. Primeiro acabamos desistindo do esforço, que se constitui numa verdadeira batalha; depois, desistimos de nós mesmos. Na cama o mundo se estreita entre lençóis e travesseiros – e essa redução, tão confortável, é também o mais insidioso dos perigos.

        Esse perigo é menor para os velhos, pois o pior da velhice é ver minguar, não o desejo, mas a vontade de dormir. O jovem tem no sono, em que a identidade se dilui, a graça de suspender por algumas horas o peso da existência. Já o velho, condenado à vigília, percebe que a noite não é penumbra, mas uma claridade na qual cada lembrança se ilumina com uma nitidez tão irrefutável quanto dolorosa. Sem o sono a noite se transforma numa vigília ininterrupta, onde a memória desfila seus fantasmas com uma nitidez punitiva.

O velho não sofre por falta de sonhos, mas pelo excesso de lembranças – todas nítidas, e algumas implacáveis. A cama, então, deixa de ser espaço de repouso para se transformar numa arena em que manter os olhos abertos sinaliza a derrota. Nessa espécie de naufrágio às avessas, não adianta se agarrar ao travesseiro. E a idade já não concede a paciência de contar carneirinhos.

           Agora me deem licença, pois tenho que me levantar.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Primeiro passeio

           

      A casa em discreto rebuliço. Os adultos mais se divertem com a expectativa, parecendo tomados por uma ansiedade de brinquedo. É que a menina vai dar o seu primeiro passeio. Empacotada em lençóis alvinitentes, ela é posta no carrinho e logo agita as mãos. Pode ser entusiasmo, pode ser um surdo apelo de socorro. Afinal, ninguém sabe o que se passa no íntimo da menina.

Evidências exteriores indicam que está tudo bem; ela não tem fome, não tem sede e trescala um perfume confuso, misto de alfazema e dos humores próprios do recesso onde esteve por nove meses. O pai guiando o carrinho, lá vai a menina explorar o mundo...

O primeiro com que se defronta é o sol, mar de luz despejado de uma vez nos seus olhos. Ao ver que ela aperta doloridamente as pálpebras, dá na telha do pai bancar o guia turístico e ir explicando. Que ela tenha calma, pois, se está sofrendo agora, um dia vai abençoar que exista algo como o sol. Graças a ele ocorre um paraíso chamado verão, onde tudo se injeta de saúde, beleza e vida. E quantas vezes no futuro você, encafuada em porões de inverno, vai ter saudades do sol e desejar que ele retome para revigorar tudo  ̶̶ com a transfiguração de sua luz e a energia de seu calor.

Agora vão pela calçada e passam diante de um jardim. Há plantas, flores e também um cachorro ciumento do espaço que lhe cabe guardar. Late furiosamente para eles. Ocorre ao pai que o quadro bem se presta à alegoria, e antes que a menina chore trata de a compor. As plantas, belas e frágeis, alegram e encantam a vida. Mas nada que seja belo e bom vem de graça; mesmo o que tão na aparência se oferece, como flores num jardim, tem junto ou por trás o seu vigia. Portanto jamais se iluda com o que lhe seja acenado sem preço. Haverá momentos extremos em que o preço vai ser você mesma, a sua alma.

Agora atravessam a rua. No caminho uma pedra, uma pedra no caminho. A alusão é óbvia demais, e o pai sorri, calado. Nada de símbolos ou metáforas. Nada quando a situação tão claramente os sugira. Eis uma lição que ele não pode dar à menina agora, talvez nem interesse a ela. Mas a partir desse passeio, dessa rua e talvez desta crônica, fica um encontro marcado.

        Antes que cheguem ao outro lado, passa um automóvel e quase os atropela. No susto o pai empurra o carrinho e bate de frente no meio-fio. A menina protesta chorando, se pudesse dizia um palavrão. O pai pede desculpas e de novo explica: foi mau jeito, e isto vai lhe acontecer muito na vida. Não por maldade nem por ódio, mas unicamente por afobação, você vai infligir sofrimento aos que ama. De nada vai adiantar que se explique; ninguém vai querer saber do carro lhe espremendo. Julgarão tão só a mão imprudente, o gesto inábil que você não soube deter. 

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Dia Nacional do Livro

 


       A experiência de ler é a mais profunda em termos de comunicação com o semelhante. Nosso diálogo com os outros é incompleto, limitado por entraves sociais e afetivos. Ninguém se abre para nós com a amplitude e a intensidade com que os personagens o fazem. Eles não têm segredos e, ao revelar-se, dizem muito de nós.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Custos terapêuticos

                

                 Um médico da mente resolveu cobrar dos que o procuram conforme os sintomas que eles apresentam. Com base nisso, estabeleceu os seguintes critérios:

— Acrófobos: o preço do tratamento não pode ficar nas alturas.

— Psicóticos: as mensalidades são divididas em duas ou mais parcelas. 

— Deprimidos: só sabem do custo das sessões quando saem da crise. 

— Obsessivos: recebem uma gravação sobre o valor do pagamento para ouvirem várias vezes ao dia, até se acharem (ou não) esclarecidos.

— Melancólicos: para não se queixarem dos custos, são advertidos de que no passado não havia tratamento eficiente para o seu mal.

— Narcisistas: são cobrados na proporção do amor que têm por si mesmos. 

— Claustrófobos: o preço varia de acordo com a sua renda mensal, para que não se vejam no aperto.

— Maníacos: a mensalidade sobe gradativamente a fim de lhes moderar a injustificada euforia.

— Histéricos: pagam uma taxa extra caso se mostrem excessivamente dramáticos para chamar a atenção do médico.

— Megalomaníacos: São cobrados na moeda de maior cotação do câmbio até caírem no real, digo, na real.

— Paranoicos: Recebem na primeira consulta a informação de que, caso deem calote em alguma mensalidade, um funcionário os persegue até a quitação da dívida. 

— Ansiosos: Podem pagar o tratamento de uma vez logo na primeira sessão. O médico estima a quantia, para os libertar do temor de que possam ficar em débito.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Lição de aprender

      O magistério não deixa de ser um teatro. Um teatro sem drama nem tragédia, pois nele não há personagens sofrendo as penas decorrentes de suas faltas. O professor é um ator calmo e às vezes impessoal, mas não pode dispensar a ênfase, o élan que lhe possibilite dominar a turma.

        O termo “dominar” sugere disputa. Na classe há um jogo de forças em quem e o professor, por mais que não goste, representa a autoridade e a norma. Os alunos seriam a rebeldia natural a ser domada. Por isso eles o veem com desconfiança e têm um secreto prazer em contestá-lo. 

        Nem sempre se vai ao mestre com carinho. O mais das vezes, o que se destina ao professor é o espinho de um dito cortante, uma pergunta desafiadora, uma molecagem que provoca risos. 

        A disputa a que me refiro, entendam-me, faz parte da dramatização da sala de aula. Não quero dizer que, no fundo, o aluno não admire o bom professor e um dia não chegue a amá-lo. Como esse amor só nasce depois, sendo fruto de um reconhecimento que pressupõe maturidade, é bom que o mestre esteja preparado para enfrentar a fúria barulhenta dos rebeldes.

        Com alguma psicologia tudo acaba dando certo. O primeiro passo é evitar as tediosas e ineficazes lições de moral. Elas eram, no meu tempo de estudante, o que mais me divertia. Primeiro porque não passavam de um discurso óbvio, que terminava realçando a distância entre quem ensina e quem aprende.

        Segundo, porque geralmente vinha daqueles que não ensinavam bem. Era como se precisassem daqueles discursos ribombantes, às vezes coléricos, para compensar a fraqueza didática e o pouco domínio das disciplinas que lecionavam.

       Aprendi a partir daí que a lição mais eficaz não é a de moral. Nada melhor, para manter a turma quieta, do que mostrar-lhe o quanto ela precisa aprender.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

A busca de ser lembrado


Gosto do termo “brumas” para figurar o esquecimento. O que vivemos se perde numa massa brumosa que dissipa as impressões do que passou. Não se revive nada, toda lembrança é o registro de uma perda. Ainda assim insistimos em lembrar, pois disso depende em grande parte a nossa identidade. 

       Outro vocábulo que também representa o que na memória se perdeu é “oblívio” – mas desse ninguém se lembra. É um vocábulo erudito e um tanto assustador. Por também significar repouso, tem alguma ligação com a morte. 

         “Amnésia”, sim, é patológico. Sugere uma perda temporária das lembranças devido a lesão cerebral ou à ingestão de determinadas substâncias. Seu radical evoca Mnemosine, a deusa que para os gregos determinava a lembrança e o esquecimento. Segundo a mitologia, os mortos que bebiam da água do seu poço relembravam suas vidas. 

O esquecimento é o que mais tememos na morte, por isso o tema da memória provoca de forma tão intensa o nosso interesse. Quando se pensa em não morrer, ficar “para sempre”, pensa-se na verdade em permanecer na memória das pessoas. 

A morte se consuma, não quando perdemos a vida, mas quando o que fomos desaparece por completo da lembrança dos vivos. Daí o empenho em que fique registrado o nosso nome nas obras de arte ou no acervo de instituições como academias, confrarias religiosas, associações de notáveis – que às vezes nem são tão notáveis assim, mas fazem questão do registro; o importante é que o nome esteja lá. 

Nesse esforço de ser lembrado há quem desconheça a fronteira entre o bem e mal. Pouco importa se o recordam como um monstro ou um psicopata, desde que seus atos imprimam uma marca indelével na memória dos outros. Nesse grupo se enquadram os assassinos de celebridades ou os que, no exercício de funções delicadas como a de pilotos de aviação, produzem tragédias que levam à destruição de inocentes.  

          Muitos fazem tudo pela glória póstuma esquecidos de que o essencial mesmo é “permanecer” enquanto estiverem vivos. Isso significa atuar, comprometer-se, ser determinante na vida dos que deles dependem ou com os quais mantêm vínculos de afeto. 

terça-feira, 16 de setembro de 2025

A voz do destino

 

            Matilde ficou surpresa quando soube que Eulália, uma velha amiga, tinha se separado de Rodolfo. Chegara a sair com os dois e, apesar de uma pequena cena de ciúme de Eulália (o marido era vistoso e simpático), teve a impressão de que eles se entendiam muito bem. Resolveu ligar para a amiga, que talvez precisasse de consolo nesse momento difícil.

Tentou mais de uma vez, e ninguém atendia; atribuiu o silêncio à depressão pela qual a outra deveria estar passando. Na quarta tentativa, ouviu a voz conhecida do outro lado. Eulália não parecia abatida. Matilde confessou a surpresa e, por solidariedade, quis saber o que tinha acontecido.   

          – Incompatibilidades, amiga. A gente tinha gostos diferentes. Em muitas coisas. No começo, deu para suportar. Com o tempo, foi ficando um saco!

          – Puxa! Eu não imaginava isso.  Achei que vocês se afinavam.

          – Eram muitas as discordâncias – suspirou. E, sem que a amiga perguntasse, começou a enumerar algumas.  

          – Por exemplo, eu gosto de praia; ele preferia viajar para o interior. Se eu não protestasse, todo fim de semana tínhamos que pegar uma estrada – em grande parte de terra! – para ele visitar um tio e tomar cerveja com os primos.

         – Trocar o mar, as ondas, o céu azul por um sítio nos cafundós não é nada agradável – confirmou a outra.

         – Tinha também a questão do gosto musical. Eu adoro música romântica, dessas que fazem a gente sonhar. Ele preferia reggae, punk e outras do tipo. Muitas vezes eu me trancava no quarto por causa do barulho.

        – Nossa! Música tem que trazer paz de espírito. Mas eu acho que, com boa vontade, vocês poderiam ter chegado a um acordo. Quando existe amor...

        – “Quando existe amor”, disse bem. Pois o amor acaba se não for estimulado. Eram muitas as diferenças, inclusive na comida.

        – Na comida também?  

– Pois é. Eu prefiro coisas leves, como legumes e verduras. Ele gostava mais de picanha, linguiça, toucinho. Era fã de gordura animal. Quando eu como essas coisas, fico com azia.

           Matilde terminou se convencendo de que, com todas essas discordâncias, os dois não podiam mesmo permanecer juntos. Ficou feliz por ver que a amiga parecia ter aceitado a situação, e depois dessa conversa passaram um tempo sem se ver.  

Curiosamente, a lembrança de Eulalia lhe voltou por ocasião de um encontro com Rodolfo, o ex-marido. Foi na praça de alimentação de um shopping. Há muito tempo não o via e estranhou que ele estivesse ali sozinho, bebericando uma cerveja. Cumprimentaram-se, e Rodolfo chamou-a para se sentar com ele; a primeira pergunta que fez foi:

           – Você soube?

           – Soube. Fiquei triste por vocês. Pareciam se dar tão bem. 

           – Tudo deu certo por um tempo, mas depois deixamos de nos entender.

           Ao contrário do que Eulália fizera com a amiga, Rodolfo não relatou as diferenças entre os dois; assumiu um tom de filosófica resignação, ponderando que nada dura para sempre e que a pessoa deve estar preparada para as perdas que podem vir. Em seguida agradeceu o interesse de Matilde e procurou mudar de assunto, querendo saber como ela estava, o que fazia. Lembrou que, na ocasião em que os três saíram juntos, Matilde se ressentia do fim de uma ligação amorosa.    

– Vivemos situações parecidas – observou com uma ponta de ironia.   

          – Pois é – ela riu. Fez uma pausa e completou: – As pessoas são diferentes.

–  Havia incompatibilidades entre vocês?

          – Várias. Ele era muito urbano, gostava de praia, sol. Já eu prefiro o interior, onde a vida é mais simples. Quase primitiva.  

– Você sabe que eu também sou assim?

          – É mesmo?! Eu não imaginava.

           – É – confirmou Rodolfo, rindo da coincidência.  

         – E tem outra coisa. Nosso gosto musical era muito diferente. Ele gostava de música que faz sonhar, fugir da realidade. Eu, pelo contrário, prefiro as que estão mais próximas da experiência das pessoas. Punk e reggae, por exemplo, que trazem a voz de grupos marginalizados.  

          – É verdade, eles têm isso em comum – concordou Rodolfo, com um leve brilho nos olhos – Você é bem-informada.

          Falaram de outros assuntos, até que chegou a hora de se despedirem. Matilde alegou que não podia mais demorar, pois no dia seguinte iria a uma feijoada na casa de parentes e fora encarregada de preparar umas carnes.

– Você gosta? – ele perguntou

– Muito! Adoro uma feijoada com linguiça, costelinha, carne seca. Sei que isso não é salutar... Mas não consigo resistir. Por isso sou requisitada para esse tipo de preparo.    

  Rodolfo riu de uma forma que chamou a atenção de Matilde. 

– Por que está rindo assim?

– Nada. É que nossos gostos são memo muito parecidos!

– Coincidência – ela ponderou.

– A gente poderia se encontrar mais vezes. Que tal?

– Claro. Vou lhe passar o número do meu zap.   

          E assim iniciaram um namoro que terminaria em casamento.

Anos depois, lembrando o encontro em que percebera as afinidades que havia entre ambos, Rodolfo comentou que não acreditava em coincidências.

          – Há nelas o dedo do destino.

Matilde sorriu, interiormente concordando. Certamente foi o destino que a fez, naquela noite, ligar para Eulália com o intuito de a consolar. Não houve necessidade de consolo, mas ela soube escutar muito bem a amiga.

Devaneios sobre a cama