segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O silêncio do inocente


Lembro-me de uma cena que presenciei, há alguns anos, num restaurante da praia que eu costumava frequentar. Nele quase sempre havia pouca gente, de modo que era possível se sentar, pedir uma cerveja e passar minutos ou horas matutando. Enquanto as garrafas vazias se multiplicavam, abrandando o peso das noites de sábado, a gente pensava na vida – às vezes, também, na morte – e curtia uma rala, iluminada, melancolia.

Todo rapaz, entre os quinze e os vinte anos, tem a sua pose de romântico da Segunda Geração. Eu estava nessa, curtindo o tédio e bebendo por uma espécie de compulsão litúrgica – que fazer no sábado à noite, a não ser isso? Foi quando vi entrar o casal. Ou não apenas um casal, pois havia com eles – ou entre eles – um menino.

Difícil era saber por que vieram parar ali. O homem tinha um rosto dostoievskiano – seco e duro. A mulher estava pálida e, pelo vermelho dos olhos, via-se que tinha chorado. Em sua inocência distraída, o menino só se parecia mesmo com um menino. De olho nas garrafas das mesas (certamente pensando nas tampinhas), vez por outra mirava um tanto perplexo os dois.

Sentam-se, encomendam qualquer coisa e, antes mesmo que o garçom traga o pedido, começam o falatório – com pressa, e no seco. O homem fala alto mesmo para um bar, não se importa com as pessoas em volta. A mulher argumenta, contesta, defende-se. Como sou vizinho, chegam à minha mesa fagulhas da discussão. E o curioso é que vou começando a ficar sóbrio. A intrusão súbita da vida real desfaz o meu incipiente torpor alcoólico.

Em dado momento, o sujeito aponta para o menino e diz: “Se não fosse por ele...”. Não completa a frase, mas é fácil de entender. A mulher rebate com raiva, exalta-se e provoca: “Se ele é o problema...” – não ouço o término da frase. Um casal em crise e entre eles um menino. O homem agora acusa os pais dela de não sei o quê, a mulher se defende dizendo que era ele o ingrato: “Você sempre teve má vontade. E não pode dizer tantinho assim de meus pais, que têm nos ajudado inclusive financeiramente.”

Ao ouvir isso, o raskolnikov dá um soco na mesa e faz menção de se levantar. Mas não se levanta, engole a possível ofensa com um copo de água mineral; o garçom tinha vindo e deixado uma coca e uma garrafinha d’água. A coca era para o menino. A mulher não quis nada. Olha em torno e distraidamente me vê. Disfarço, constrangido, e finjo que não percebo sua nova torrente de lágrimas. O menino tem o ar impaciente e assustado.  

Depois de algum tempo os dois vão embora, levando a reboque o seu pequeno estorvo. Fiquei me perguntando: por que na frente do menino? Por enquanto, ele era um involuntário problema para os dois. No futuro, arruinado por cenas como essa, seria um desastre incurável para si mesmo. Aquela cena jamais me saiu da cabeça. Pensei que os adultos até poderiam brigar, trocar farpas, externar um recíproco ressentimento – mas não tinham o direito de, ao fazer isso, destruir a inocência das crianças.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Questão de sentimento

Aproveitei o Dia do Professor para fazer uma nova brincadeira com o Copilot, assistente de inteligência artificial desenvolvido pela Microsoft em parceria com a OpenIA. Perguntei-lhe o que um ex-aluno de Chico Viana poderia lhe escrever nessa data. Eis a resposta:

“Querido Professor Chico Viana,

Neste Dia dos Professores, quero expressar minha profunda gratidão e admiração pelo seu trabalho incansável e dedicação à educação. Sua paixão pelo ensino e seu compromisso com o desenvolvimento de seus alunos são verdadeiramente inspiradores.

“Você não apenas transmite conhecimento, mas também molda vidas, incentiva sonhos e abre portas para o futuro. Cada aula sua é uma lição de vida, e sua paciência, sabedoria e carinho fazem toda a diferença.

“Obrigado por ser mais que um professor, por ser um mentor e um amigo. Sua influência positiva vai muito além da sala de aula, e sou eternamente grato por tudo que aprendi com você.

“Feliz Dia dos Professores! Que seu dia seja repleto de reconhecimento e alegria, assim como você merece.

Com muita gratidão e carinho,

[   ]”

          ****

A IA foi bem enfática, como veem. Quase me emocionou. E o curioso é que escreveu tudo isso sem ter estudado comigo!

Confesso que prefiro a mensagem que uma aluna de carne e osso me mandou pelo zap:

“Feliz Dia dos Professores, Chico!

O senhor me ensinou a como escrever melhor mas também outras lições que carregarei comigo pra vida. Obrigada por tanta dedicação no seu trabalho! Me sinto privilegiada por ser sua aluna.” ❤️

           O que me tocou, mais do que a mensagem em si, foi o emoji de um coraçãozinho no final do texto – coisa que a IA não seria capaz de fazer com sentimento.

sábado, 28 de setembro de 2024

Dia dos Amantes

 

         Outrora eram somente os santos e as figuras históricas. Hoje praticamente todo profissional tem o seu dia. Mesmo fora das profissões, basta alguém pertencer a uma categoria para ter a sua data especial, tornando-se alvo de homenagens cujo objetivo não é outro senão incrementar o comércio. Há um dia para tudo e para todos, do faxineiro ao vendedor de picolé – o que, quanto a este, é muito justo. Num país quente como o nosso, o picolezeiro tem a nobre função de refrigerar os corpos e desentorpecer as almas, deixando-nos mais dispostos para enfrentar estações como o verão.

         A prova de que o hábito se disseminou é que no dia 22 de Setembro comemorou-se o Dia dos Amantes. Catei nos jornais alguma referência mais extensa a tão curiosa efeméride, e nada encontrei; mas os amantes bem que mereciam uma crônica. Vejam que a data não se refere aos amados, ou às amadas, que são entidades nobres e gozam do prestígio da sociedade.  Refere-se aos que amam com ímpeto transgressivo, o mais das vezes burlando normas e atropelando os papéis sociais. Os amantes são “os outros”, que por razões óbvias não podem se declarar. Daí a curiosidade que um dia dedicado a eles provoca.

         Machado não os tinha em alta conta – certamente pelo bom casamento que fizera com D. Carolina.  Vejam o que ele diz no breve Capítulo XXXVIII de “Quincas Borba”, capítulo esse que antecede o da confissão amorosa do ingênuo Rubião à sagaz e interesseira Sofia: “Rubião estava resoluto. Nunca a alma de Sofia pareceu convidar a dele, com tamanha instância, a voarem juntas até às terras clandestinas, donde elas tornam, em geral, velhas e cansadas. Algumas não tornam. Outras param a meio caminho. Grande número não passa da beira dos telhados...”. Se os envolvidos retornam com as almas velhas e cansadas das “terras clandestinas”, melhor seria que por elas não se aventurassem... Mas não vai ser esse reparo, típico do Bruxo quanto a essa e outras falhas humanas, que vai enfraquecer o nosso registro.  

            Fala-se que amantes são todos os que amam com paixão, sejam eles namorados ou esposos. Haverá nesse argumento um eufemismo interesseiro, cujo objetivo seria descaracterizar os homenageados a fim de incluí-los mais amplamente, e sem remorso, entre os que merecem os mimos adequados à ocasião. Tudo para vender mais. Os amantes habitam mesmo o “outro lado”, não são os parceiros institucionalizados do amor. São antes cúmplices, por isso não deixa de ser curioso escolher para eles um dia, à semelhança do que se faz com os santos, os avós, os pais e as mães.

         Notei que pouco se falou na data, mas certamente ela foi comemorada. Por meio não de cartões ou telegramas explícitos, mas de e-mails cifrados que atravessaram a Internet levando o apelo ansioso e triste de dois corpos solitários. Talvez em encontros furtivos num desses motéis promocionais, que além do preço módico prometem sigilo absoluto. Pois esse é o tipo do dia para se comemorar na surdina, à meia-luz, por debaixo do pano.  

         Enfim, leitor, sem hipocrisia nem cinismo enalteçamos os amantes no seu dia. Deles é a glória da indústria de perfumes e lingeries. Sem falar de quanto faturam os sex shops numa ocasião como essa. Se hoje as datas valem sobretudo pelo que vendem, e os amantes têm lá a sua fatia de mercado, comemoremos sem preconceito a data a eles dedicada. Sem preconceito e com a sinceridade de reconhecer: que ser humano já não se deixou tocar pelo tentador mistério das “terras clandestinas”? 

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Woody Allen, não por acaso

“Golpe de sorte em Paris” reprisa uma conhecida obsessão de Woody Allen: o papel do acaso na determinação do que nos acontece. Só que a forma como o tema é tratado não está no nível que o diretor/roteirista alcança, por exemplo, em “Match Point”, onde a  narrativa é mais densa, e os diálogos, mais inventivos.

A partir do encontro (casual) com Alain, um antigo colega de classe, Fanny inicia um caso que tende a pôr em xeque o seu casamento. Sabendo disso, o marido (Jean) trata de providenciar a morte desse amante, repetindo o que fizera para se livrar de um antigo sócio. 

O plano funciona até o momento em que a mãe de Fanny, a partir de uma conversa com amigos, começa a desconfiar do genro. Ele percebe isso e arma um plano para também eliminá-la. O fato de essa nova tentativa fracassar  (já dei spoiler o suficiente) é o meio de que Allen se serve para destacar no jogo cego do destino o componente da ironia. 

É irônica a forma como, no final, o assassino é “punido” — caso se possa chamar de punição um ato para o qual não há nenhum propósito consciente e deliberado. Essa questão Allen implicitamente deixa aos espectadores.

Nesse ponto “Golpe de sorte em Paris” difere de “Match Point”, em que o assassino sai incólume (a não ser pela manifestação de um discreto sentimento de culpa). Nem por isso se pode dizer que a ironia sugere algum tipo de justiça, pois o seu efeito benéfico deriva de uma ocorrência casual. 

Enfim, segundo a visão de mundo do autor, estamos na dependência da sorte. O que nos acontece é gratuito, não obedece a um desígnio superior. O que podemos fazer é instaurar dentro dos nossos limites uma causalidade humana orientada por ideais de justiça e igualdade.

          O filme, claro, não contempla objetivamente essa ressalva. Seu propósito, coerente com o inesperado desfecho, é deixar em aberto a questão e nos fazer pensar. Ou filosoficamente sorrir, pois há em toda ironia uma nota de humor.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

O real motivo

          A função da publicidade não é apenas vender. É despertar em nós recônditos impulsos, criando necessidades até então inexistentes ou, pelo menos, ignoradas. O comercial age um pouco como a droga, que o indivíduo propenso ao vício despreza enquanto não conhece. Depois de tê-la experimentado, não consegue mais viver sem ela.

    A publicidade também faz registros curiosos e sintomáticos da vida moderna, funcionando como documento antropológico ou retrato psicológico da sociedade atual.  Nesses casos, tem muito pouco de invenção. Em vez de se antecipar à realidade, como obra de ficção que é, capta o que está nela disperso.

Me lembro, a propósito, de um comercial sobre uma marca de carro exibido há algum tempo na TV. Um pai, depois outro e mais outro levam seus filhos ao colégio. Os meninos vão ansiosos, preocupados. Pedem aos velhos que não parem o automóvel na entrada da escola, onde como é natural se agrupa muita gente. Os pais não entendem, desconfiam de que alguma coisa está errada. Supõem então que os filhos temem o julgamento dos colegas por estarem naqueles carros feios, ultrapassados.  

Não havia nessa mensagem publicitária nada de novo. O comportamento dos garotos ainda é muito comum nos dias que correm. E não quanto ao carro. ouvi de alguns pais que seus filhos se envergonham da casa, da roupa, do computador superado que têm em casa.

O problema é que, ao documentar esse tipo de reação, o comercial praticamente o endossava. Apresentava como legítimo o ressentimento dos meninos. Mas quem era o verdadeiro culpado por tal ressentimento?     

         Subliminarmente, a peça publicitária dava a entender que o motivo da vergonha dos filhos não eram os automóveis. O motivo eram os pais, que não tinham dinheiro ou discernimento para comprar coisa melhor. Os pais é que os garotos, encolhidos naquelas “carroças” fora de moda, gostariam de esconder dos colegas. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

A recusa a envelhecer

Tem crescido o número de pessoas que se submetem a procedimentos estéticos. Segundo li em matéria divulgada pela Internet, “no Brasil houve um aumento de 390% na procura por esses procedimentos no primeiro trimestre de 2022, em comparação com o mesmo período do ano anterior.” Retirada de gordura, preenchimento facial ou mesmo a tradicional plástica são comuns nos que querem melhorar o seu aspecto físico.   

Muitos desses procedimentos não são seguros, e a gente se pergunta o que leva as pessoas a correrem esse tipo de risco. A resposta parece óbvia: a recusa em aceitar a deterioração que a velhice traz. Se beleza é juventude, como se costuma dizer, envelhecer é ficar feio e ir de encontro às determinações de uma sociedade que exalta a aparência e pouco liga para o que há dentro de cada um.   

          Recentemente morreu Alain Delon, um dos ícones modernos da beleza masculina. A mídia fez questão de confrontar sua imagem de hoje com a do jovem que há algumas décadas fazia as garotas suspirarem. Desse confronto emergia a dura percepção do que o tempo faz ao corpo, roubando-lhe o prumo, o viço, a esbeltez que ele ostenta nas primeiras décadas de vida.

Bilac escreveu que a velhice é coisa vil – lembra Rubem Braga em uma de suas crônicas. “Vil” quer dizer “desprezível”, um adjetivo forte e talvez injusto, mas que muitos usam sem hesitação nem pejo para qualificar esse delicado momento da vida.

Um paradoxo curioso é que antigamente, quando a ciência cosmética dispunha de poucos recursos, havia uma maior aceitação da chamada senectude (expressão ante a qual muitos se arrepiam, temerosos das macacoas comuns a esse estágio da vida). Envelhecia-se mais cedo, é verdade, mas havia uma maior tendência a aceitar o duro veredicto do tempo. Parecia não haver mesmo outro jeito.

Hoje o comum é se insurgir contra as transformações determinadas pela velhice. Se existem alternativas, por que aceitar as rugas, estrias e outras marcas que ela traz?  Não é melhor submeter o corpo aos reparos que, com o dispêndio de uma boa grana, podem lhe dar um aspecto de novo juvenil?

Tudo seria simples e gratificante se a Natureza propiciasse esse tipo de reversão. Apesar de filosoficamente se falar em “eterno retorno”, a verdade é que o tempo não nos permite retroceder. No mais das vezes, os estratagemas com que procuramos nos furtar ao seu fluxo terminam por se voltar contra nós. Piorando, por exemplo, o aspecto que se queria esconder. Ou ironicamente antecipando o fim, como ocorre nos acidentes letais que vemos hoje em mesas e leitos de cirurgias estéticas.

O silêncio do inocente