sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Lição de aprender

      O magistério não deixa de ser um teatro. Um teatro sem drama nem tragédia, pois nele não há personagens sofrendo as penas decorrentes de suas faltas. O professor é um ator calmo e às vezes impessoal, mas não pode dispensar a ênfase, o élan que lhe possibilite dominar a turma.

        O termo “dominar” sugere disputa. Na classe há um jogo de forças em quem e o professor, por mais que não goste, representa a autoridade e a norma. Os alunos seriam a rebeldia natural a ser domada. Por isso eles o veem com desconfiança e têm um secreto prazer em contestá-lo. 

        Nem sempre se vai ao mestre com carinho. O mais das vezes, o que se destina ao professor é o espinho de um dito cortante, uma pergunta desafiadora, uma molecagem que provoca risos. 

        A disputa a que me refiro, entendam-me, faz parte da dramatização da sala de aula. Não quero dizer que, no fundo, o aluno não admire o bom professor e um dia não chegue a amá-lo. Como esse amor só nasce depois, sendo fruto de um reconhecimento que pressupõe maturidade, é bom que o mestre esteja preparado para enfrentar a fúria barulhenta dos rebeldes.

        Com alguma psicologia tudo acaba dando certo. O primeiro passo é evitar as tediosas e ineficazes lições de moral. Elas eram, no meu tempo de estudante, o que mais me divertia. Primeiro porque não passavam de um discurso óbvio, que terminava realçando a distância entre quem ensina e quem aprende.

        Segundo, porque geralmente vinha daqueles que não ensinavam bem. Era como se precisassem daqueles discursos ribombantes, às vezes coléricos, para compensar a fraqueza didática e o pouco domínio das disciplinas que lecionavam.

       Aprendi a partir daí que a lição mais eficaz não é a de moral. Nada melhor, para manter a turma quieta, do que mostrar-lhe o quanto ela precisa aprender.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

A busca de ser lembrado


Gosto do termo “brumas” para figurar o esquecimento. O que vivemos se perde numa massa brumosa que dissipa as impressões do que passou. Não se revive nada, toda lembrança é o registro de uma perda. Ainda assim insistimos em lembrar, pois disso depende em grande parte a nossa identidade. 

       Outro vocábulo que também representa o que na memória se perdeu é “oblívio” – mas desse ninguém se lembra. É um vocábulo erudito e um tanto assustador. Por também significar repouso, tem alguma ligação com a morte. 

         “Amnésia”, sim, é patológico. Sugere uma perda temporária das lembranças devido a lesão cerebral ou à ingestão de determinadas substâncias. Seu radical evoca Mnemosine, a deusa que para os gregos determinava a lembrança e o esquecimento. Segundo a mitologia, os mortos que bebiam da água do seu poço relembravam suas vidas. 

O esquecimento é o que mais tememos na morte, por isso o tema da memória provoca de forma tão intensa o nosso interesse. Quando se pensa em não morrer, ficar “para sempre”, pensa-se na verdade em permanecer na memória das pessoas. 

A morte se consuma, não quando perdemos a vida, mas quando o que fomos desaparece por completo da lembrança dos vivos. Daí o empenho em que fique registrado o nosso nome nas obras de arte ou no acervo de instituições como academias, confrarias religiosas, associações de notáveis – que às vezes nem são tão notáveis assim, mas fazem questão do registro; o importante é que o nome esteja lá. 

Nesse esforço de ser lembrado há quem desconheça a fronteira entre o bem e mal. Pouco importa se o recordam como um monstro ou um psicopata, desde que seus atos imprimam uma marca indelével na memória dos outros. Nesse grupo se enquadram os assassinos de celebridades ou os que, no exercício de funções delicadas como a de pilotos de aviação, produzem tragédias que levam à destruição de inocentes.  

          Muitos fazem tudo pela glória póstuma esquecidos de que o essencial mesmo é “permanecer” enquanto estiverem vivos. Isso significa atuar, comprometer-se, ser determinante na vida dos que deles dependem ou com os quais mantêm vínculos de afeto. 

terça-feira, 16 de setembro de 2025

A voz do destino

 

            Matilde ficou surpresa quando soube que Eulália, uma velha amiga, tinha se separado de Rodolfo. Chegara a sair com os dois e, apesar de uma pequena cena de ciúme de Eulália (o marido era vistoso e simpático), teve a impressão de que eles se entendiam muito bem. Resolveu ligar para a amiga, que talvez precisasse de consolo nesse momento difícil.

Tentou mais de uma vez, e ninguém atendia; atribuiu o silêncio à depressão pela qual a outra deveria estar passando. Na quarta tentativa, ouviu a voz conhecida do outro lado. Eulália não parecia abatida. Matilde confessou a surpresa e, por solidariedade, quis saber o que tinha acontecido.   

          – Incompatibilidades, amiga. A gente tinha gostos diferentes. Em muitas coisas. No começo, deu para suportar. Com o tempo, foi ficando um saco!

          – Puxa! Eu não imaginava isso.  Achei que vocês se afinavam.

          – Eram muitas as discordâncias – suspirou. E, sem que a amiga perguntasse, começou a enumerar algumas.  

          – Por exemplo, eu gosto de praia; ele preferia viajar para o interior. Se eu não protestasse, todo fim de semana tínhamos que pegar uma estrada – em grande parte de terra! – para ele visitar um tio e tomar cerveja com os primos.

         – Trocar o mar, as ondas, o céu azul por um sítio nos cafundós não é nada agradável – confirmou a outra.

         – Tinha também a questão do gosto musical. Eu adoro música romântica, dessas que fazem a gente sonhar. Ele preferia reggae, punk e outras do tipo. Muitas vezes eu me trancava no quarto por causa do barulho.

        – Nossa! Música tem que trazer paz de espírito. Mas eu acho que, com boa vontade, vocês poderiam ter chegado a um acordo. Quando existe amor...

        – “Quando existe amor”, disse bem. Pois o amor acaba se não for estimulado. Eram muitas as diferenças, inclusive na comida.

        – Na comida também?  

– Pois é. Eu prefiro coisas leves, como legumes e verduras. Ele gostava mais de picanha, linguiça, toucinho. Era fã de gordura animal. Quando eu como essas coisas, fico com azia.

           Matilde terminou se convencendo de que, com todas essas discordâncias, os dois não podiam mesmo permanecer juntos. Ficou feliz por ver que a amiga parecia ter aceitado a situação, e depois dessa conversa passaram um tempo sem se ver.  

Curiosamente, a lembrança de Eulalia lhe voltou por ocasião de um encontro com Rodolfo, o ex-marido. Foi na praça de alimentação de um shopping. Há muito tempo não o via e estranhou que ele estivesse ali sozinho, bebericando uma cerveja. Cumprimentaram-se, e Rodolfo chamou-a para se sentar com ele; a primeira pergunta que fez foi:

           – Você soube?

           – Soube. Fiquei triste por vocês. Pareciam se dar tão bem. 

           – Tudo deu certo por um tempo, mas depois deixamos de nos entender.

           Ao contrário do que Eulália fizera com a amiga, Rodolfo não relatou as diferenças entre os dois; assumiu um tom de filosófica resignação, ponderando que nada dura para sempre e que a pessoa deve estar preparada para as perdas que podem vir. Em seguida agradeceu o interesse de Matilde e procurou mudar de assunto, querendo saber como ela estava, o que fazia. Lembrou que, na ocasião em que os três saíram juntos, Matilde se ressentia do fim de uma ligação amorosa.    

– Vivemos situações parecidas – observou com uma ponta de ironia.   

          – Pois é – ela riu. Fez uma pausa e completou: – As pessoas são diferentes.

–  Havia incompatibilidades entre vocês?

          – Várias. Ele era muito urbano, gostava de praia, sol. Já eu prefiro o interior, onde a vida é mais simples. Quase primitiva.  

– Você sabe que eu também sou assim?

          – É mesmo?! Eu não imaginava.

           – É – confirmou Rodolfo, rindo da coincidência.  

         – E tem outra coisa. Nosso gosto musical era muito diferente. Ele gostava de música que faz sonhar, fugir da realidade. Eu, pelo contrário, prefiro as que estão mais próximas da experiência das pessoas. Punk e reggae, por exemplo, que trazem a voz de grupos marginalizados.  

          – É verdade, eles têm isso em comum – concordou Rodolfo, com um leve brilho nos olhos – Você é bem-informada.

          Falaram de outros assuntos, até que chegou a hora de se despedirem. Matilde alegou que não podia mais demorar, pois no dia seguinte iria a uma feijoada na casa de parentes e fora encarregada de preparar umas carnes.

– Você gosta? – ele perguntou

– Muito! Adoro uma feijoada com linguiça, costelinha, carne seca. Sei que isso não é salutar... Mas não consigo resistir. Por isso sou requisitada para esse tipo de preparo.    

  Rodolfo riu de uma forma que chamou a atenção de Matilde. 

– Por que está rindo assim?

– Nada. É que nossos gostos são memo muito parecidos!

– Coincidência – ela ponderou.

– A gente poderia se encontrar mais vezes. Que tal?

– Claro. Vou lhe passar o número do meu zap.   

          E assim iniciaram um namoro que terminaria em casamento.

Anos depois, lembrando o encontro em que percebera as afinidades que havia entre ambos, Rodolfo comentou que não acreditava em coincidências.

          – Há nelas o dedo do destino.

Matilde sorriu, interiormente concordando. Certamente foi o destino que a fez, naquela noite, ligar para Eulália com o intuito de a consolar. Não houve necessidade de consolo, mas ela soube escutar muito bem a amiga.

sábado, 30 de agosto de 2025

A magia de um humor fino

          

           Ele era um gênio da língua, comparável a Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues ou Machado de Assis. Constituía com Millôr Fernandes uma dupla em que o humor se associa à crítica de costumes e à reflexão filosófica. Ambos tinham como matéria-prima o homem e sua presunção de superioridade. 

Como “gigolô das palavras”, Veríssimo fazia delas o que queria — mas, ao contrário desse personagem na vida real, deixava-as satisfeitas. E até orgulhosas, pois sabia “vê-las” em sua corporeidade, suas ressonâncias semânticas, seu poder de reinventar a realidade para dela nos afastar e nos fazer melhor percebê-la. 

Em suas histórias curtas, ele espelhava a perplexidade e por vezes o ridículo em que se debate a classe média com as suas dúvidas sobre a sexualidade, a psicanálise, a existência de Deus. Criticava os modismos em que muitos embarcam no ingênuo afã de dar sentido ao que não conseguem compreender.

Tal como o “irmão” Millôr, era um anarquista e um cético quanto aos discursos falsamente piedosos que engodam quem prefere, à lúcida reflexão, o conforto das ilusões. A diferença é que no carioca refulgia sobretudo a inteligência — e nele, Veríssimo, refulgia o espírito.

Ou seria melhor dizer a espirituosidade do estilista que sabia, como poucos, ressaltar o que há de poético nos textos de humor. Não me refiro ao poético sentimental, lírico, mas à característica da poesia como desaumatização do sentido convencional das palavras. Veríssimo as redescobre com a mesma perícia com a qual desvela alguns dos obscuros e risíveis anseios da nossa alma.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O santo e a odalisca


     
      Era impossível saber o que naquela noite se passava na cabeça de Salomé. Dizem que ela dançou melhor do que nunca, retardando os gestos voluptuosos e coleando como a serpente do Paraíso, a fim de comover o rei. Este, numa das vezes em que ela se curvou para beijá-lo – um aperitivo para o que viria depois –, reteve-a pelas espáduas e teria sussurrado: “Teu corpo é um monumento à luxúria. Um monumento que se move...”. Tais palavras penetraram as entranhas da dançarina como um vinho inebriante e tentador. Consciente da própria beleza, ciente do seu poder, Salomé bailou tresloucada pelos jardins do palácio. Queria impressionar o rei e pedir-lhe uma coisa. “O quê, Salomé?”

Depois... Mais tarde.

E sorria, enigmática, saracoteando os quadris em espasmos de fogo. Às vezes invertia os movimentos, empinando o ventre em ritmadas simulações do ato sexual. O rei, pela quarta ou quinta taça, enlouquecia sob o real  manto e até deixara cair a coroa, que jazia emborcada sobre uma alcatifa. Era um rei provisoriamente destronado, um rei descomposto pelo desejo e que não via a hora de evacuar a salamandar todos embora, inclusive a rainha, sua mulher – e fazer daquele recinto, alcova.

Salomé, no entanto, estava triste. Dizem as testemunhas daquela noite especial que, apesar do furor com que dançava, percebia-se em seus olhos uma tristeza profunda. Outros, observando-a com mais atenção, notaram que à melancolia do olhar mesclava-se um brilho aterrorizante e maligno. Todo aquele frisson corporal era uma tortura, uma espécie de exorcismo. Salomé em verdade não dançava para encantar o rei, pois esse ela tinha conquistado; com o manto revolto e a coroa caída, o monarca era uma imagem de rendição. Dançava era para esquecer que, assim tão bela e desejável, fora recusada por João Batista. Quem era João, aquele rústico e insano que comia gafanhotos, vestia-se de peles e dizia palavras sem nexo, falando de um reino onde pouco valiam os atributos do corpoquem era ele para menosprezar uma beleza pela qual suspiravam os ricos, os nobres, os reis? Quem era ele para desprezá-la?

Quanto mais pensava nisso, mais e melhor Salomé dançava. Nunca se vira tanto vigor em seus gestos, tanta compassada violência em seus requebros de serpente irada. Poucos percebiam que a música era o seu açoite, o chicote em que se debatia o seu amor-próprio. Apenas algumas mulheres entenderam aquela coreografia do narcisismo ferido. Apenas as mais belas, intimamente satisfeitas de ver a outra sofrer.   

Em dado momento Salomé parou, como que saturada do próprio delírio. Foi até o reique emborcava mais uma taça de vinho – e sussurrou-lhe com a língua untuosa alguma coisa ao ouvido. Sua Majestade jogou fora o copo e se levantou de um jato, repentinamente sóbrio: “A cabeça?! Mas como, a cabeça?!”

         – Aqui e , numa bandeja. Como uma prova de que Vossa Majestade me ama e me quer

O rei chamou a guarda e ordenou que imediatamente se cumprisse o desejo de Salomé. Que localizassem João e, sem lhe dar tempo de dizer palavrapois falando ele era perigoso e sedutor, se bem que em outro sentido –, cortassem-lhe a cabeça e a levassem até ali.   

 Fez-se rápido a vontade real. Alguns minutos depois, como se fosse parte de um menu imprevisto e grotesco, a cabeça de João era servida à atônita curiosidade dos presentes. “O que foi que ele fez?” – perguntavam. “Foi ela quem pediu!” – respondiam, apontando para Salomé.

Dizem que a dançarina ainda não ficara satisfeita. Quis coroar sua vingança com um gesto retumbante, apoteótico. Então pediu que colocassem a cabeça de João Batista numa mesa e começou, com gestos lentos e excitantes, a dançar diante dela. Durante meses, anos, ele a repelira, fugira aos seus encantos. Ela queria ver agora... E contorcia-se diante do seu escalpo, daquele troféu ao seu orgulho ferido, com uma triunfante volúpia. Mas aos poucos foi parando, parando, no rosto uma expressão de contrariedade que se ia transformando em medo, e logo em horror.

         Aos gritos, chamou os guardas. E mandou levar a bandeja, a cabeça de cabelos revoltos e sujos de sangue. Não suportara a castidade que insistia em brilhar, como dois lagos azuis de inocência, nos olhos vidrados do morto.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Teia de equívocos

               


            Dizem que no início dos tempos não havia distância entre as palavras e as coisas. Cada objeto ou ser era o que significava e, reciprocamente, significava o que era.  A palavrafogo” queimava, a palavramedo” tremia, e um vocábulo comodor” parecia gemer.

            Falar disso é entrar no reino da animização, mas não podemos fugir da metáfora quando nos referimos às origens do homem e da linguagem. A própria ideia de que palavra e coisa se identificavam era uma interpretação mítica. Essa união original entre palavra e objeto, ainda que fundada no animismo, servia como um ponto de partida para compreender a complexa natureza da comunicação.

         Quem éramos antes de começarmos a falar? A Bíblia remonta o início de tudo à palavra: “No princípio era o Verbo”. Para as Escrituras, antes da palavra não havia o homem. A linguagem é que nos engendra. Lacan repetiria isso séculos depois ao afirmar que o homem não fala porque é; é, porque fala. Ou seja: a linguagem não constitui apenas uma ferramenta; ela é sobretudo um elemento fundador da nossa existência. Molda quem somos antes mesmo de qualquer ato de fala consciente.

            Especulações metafísicas à parte, sabemos hoje que é próprio das palavras representar o que não são. O pai da linguística moderna, Ferdinand de Saussure, descreve essa característica como arbitrariedade do signo. Os signos são arbitrários porque não existe relação necessária entre eles e os objetos ou seres que designam.

            O que nos faz chamar uma bola de “bola”? O artefato esférico de couro com que jogamos uma boa pelada bem podia se chamar “linguiça”. E diríamos com a maior naturalidade: “chute a linguiça”, “rebata a linguiça”, “encaixe a linguiça”. Essa arbitrariedade diminui no plano da realização artística, em que os signos são motivados devido à maior vinculação entre significado e significante, mas mesmo aí não se desfaz totalmente.

            Daí concluímos que, se o sentido das palavras é convencional, não existe uma essência da linguagem. Toda semântica, ou seja, toda relação entre significante e significado envolve uma mentira, um jogo em que a verdade se dissimula pela própria insuficiência do signo.

         Se acrescentamos a isso a natural má-fé do ser humano, que é um mestre na arte de disfarçar seus desejos e intenções, compreendemos o quanto estamos longe de nos entendermos. A comunicação entre os homens é uma teia de equívocos, em que cada um imagina dizer o que os outros supõem estar ouvindo.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

A voz da casa

 

       Ao chegar em casa, ele notou que alguma coisa estava errada. A mulher e um dos filhos, em pé na sala, empunhavam cartazes. O do rapaz dizia: “Agora é tudo ou nada! Aumento na mesada!”. A esposa não fizera por menos: “Basta de ladainha. Homem também cozinha!”. Tudo rimado, para soar mais forte. 

        – Que é que está havendo?! Isso é brincadeira? 

        – Brincadeira coisa nenhuma! Nunca falamos tão sério! – gritou um dos adolescentes, que tinha o rosto pintado de verde e amarelo. 

        Pouco a pouco, ele foi se dando conta do que se passava. Sua família entrara na onda de insatisfação que atingia o país – motivada, em grande parte, pelo tal “politicamente correto”. Eis no que deu ficarem tanto tempo acessando o Facebook, o Twitter, ou vendo televisão. Respirou fundo, imaginando uma saída:

         – Calma, pessoal. Vamos conversar.

         – De conversa estamos cheios! – rebateu a garota, que tingira parte dos cabelos de azul e mandara colocar um piercing na orelha esquerda – para simbolizar as algemas em que se sentia aprisionada. Uma de suas reivindicações era viajar sozinha com o namorado, o que o pai terminantemente proibira.

          – Está bem, vou pensar no assunto. Mas vocês não acham que a gente devia primeiro consultar outros membros da família? Seus avós, por exemplo. Eles têm experiência. 

         – Um plebiscito familiar? – protestou o rapaz. – Nunca! Isso é uma manobra diversionista, um expediente protelatório para enfraquecer nossas reivindicações. O senhor tem que nos responder agora. 

         – Está bem, vamos nos sentar. E podem baixar os cartazes. Sobretudo você, Elvira, que tem câimbra quando fica muito tempo com os braços numa posição só; quem mandou deixar o Pilates?... Quero ouvir um por um.

         Quando o mais velho começou a falar, ouviu-se uma barulheira infernal no quarto do caçula. Correram para ver o que era. Lá se depararam com uma cena inédita naquele cenário até então doméstico e ordeiro: cama virada, roupas pelo chão, sapatos empilhados fora da sapateira, e no centro o menino segurando um cartaz onde se lia: “Fora Barrabás! Castigo nunca mais!”.

           Elvira ficou desesperada ao ver o quarto todo revirado. Quem iria arrumar?! Os mais velhos também não concordavam com aquilo. O pai aproveitou a deixa:

        – Acabou-se! Não vou mais ouvir nem atender ninguém.

         – O senhor não pode fazer isso, pai – implorou a menina. – A gente também não aprova o que ele fez. Ninguém é a favor de quebra-quebra. Quem por aqui patrocinou vandalismo já se deu muito mal...   

        – É verdade, pai. Foi um ato solitário. Zequinha é um vândalo, não faz parte do nosso movimento. Merecia até ser dispersado com gás lacrimogêneo – disse em tom de piada, que geralmente alivia a tensão comum nesse tipo de entrevero. 

        – Gás lacrimogêneo?! Ele vai chorar, sim, mas por outra razão.      

          Dito isso, foi ao quarto pegar o chinelo. Antes de ir se entender com o caçula, fez questão de dizer bem alto para que os outros ouvissem:

         – Por enquanto as manifestações estão suspensas. Até segunda ordem!

Lição de aprender