A pergunta agora não é se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. É se Luiz Fernando Carvalho traiu ou não traiu Machado de Assis. Se tivesse assistido à série da TV Globo, o Bruxo só não esbravejaria no túmulo porque tinha horror à controvérsia. Mas certamente franziria o cenho de surpresa e contrariedade.
Como fez uma leitura livre do romance, o diretor tinha o direito de aproveitar a história como lhe conviesse. O problema é saber até que ponto sua opção manteve-se em sintonia com o espírito da obra.
“Dom Casmurro” é um romance realista, com tintas de naturalismo. O narrador faz um retrospecto da vida centrando as lembranças na paixão pela adolescente Capitu, com quem veio a se casar.
O relato é basicamente a história de uma traição, pois um dos propósitos do narrador é mostrar que a Capitu adulta estava na Capitu menina. Os olhos de ressaca engolfaram o Bentinho adolescente tanto quanto, anos depois, a ressaca marinha engolfaria mortalmente o amante Escobar. Capitu é natureza, desejo, é o feminino ardiloso que escapa à compreensão do seminarista tímido e cheio de medos.
No romance, esses ingredientes aparecem de maneira sóbria. Bentinho narra suas angústias, mas não se desespera. Julga a esposa e o amigo, que “se juntaram para traí-lo”, com uma amargura temperada de ironia. Uma ironia sem trejeitos nem esgares, própria de quem não perdoou ser traído mas – de certa forma – já se resignou aos fatos.
Luiz Fernando Carvalho deu um tratamento farsesco ao romance. Acrescentou a isso a pantomima circense. Os atores, em sua maioria, posam, rebolam e empostam a voz. Bentinho se transformou num narrador redundante e tenso, que mais atrapalha do que ajuda a compreensão da história. Refere os eventos como se eles não tivessem ocorrido, mas ainda fossem ocorrer, numa ansiedade injustificável em já viveu tudo aquilo. Nada menos machadiano.
O diretor optou por uma estética expressionista que tem muito pouco a ver com o clássico e “transparente” Machado de Assis. O que admiramos no autor de “Dom Casmurro” é a sutileza, a ironia, o meio-tom. Na série televisiva varreu-se tudo isso em prol do excesso formal, da pseudo-imponência, do kitsch entre cinema e teatro que acabou dando à encenação um tom de caricatura.
Mas há um consolo em tudo isso. Um dos pontos positivos da série foi concorrer para desvendar o enigma de Capitu. Quem, “vendo” um Ezequiel que é a cara de Escobar, terá mais dúvida sobre a traição? No romance, a semelhança pode ser atribuída a fantasia do narrador. Na tela, ou deliramos todos, ou a mulher enganou mesmo Bentinho.
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Apesar de todos esses deslizes, essas séries pode ser um estímulo a (craseado) leitura.
ResponderExcluirPelo menos algumas vezes comigo foi assim: eu assistia a (craseado) série e não acreditava que aquilo poderia ser daquele jeito msm... Achava algumas coisas exageradas e ia comprovar lendo.
Sempre gostei mais dos livros! =D
Um abraço!