quinta-feira, 23 de maio de 2013

Divino vinho

Dizem que beber é uma arte -- a não ser para os alcoólatras, que bebem sem nenhuma preocupação estética. Tenho pouca experiência no assunto, pois sempre bebi muito pouco, mas não há dúvida de que o álcool bem-administrado traz alguma forma de beleza à vida. Uma beleza não meramente contemplativa, mas também funcional.
Uma de suas utilidades, bastante apregoada, é servir de desinibidor para os tímidos. Outra é ajudar a esquecer os problemas de hoje -- de hoje, ressalve-se, pois em certas pessoas ele evoca reminiscências por vezes traumáticas. Tenho um amigo que quando bebe odeia o pai, pois se lembra das surras injustas que levou. Nesses momentos ele chora, como se ainda sentisse as lapadas do cinturão, e só volta a se entender com o “velho” quando está de novo sóbrio.
Seja qual for o mérito do álcool, uma coisa é certa: beber é um aprendizado que pode começar com o que for, mas termina sempre no vinho (mais especificamente, no vinho tinto). O vinho é a culminância, a redenção, a prova de que a experiência com as outras bebidas não passa de um doloroso estágio rumo à transcendência.
A cada momento da vida corresponde uma preferência etílica. A adolescência é a fase da cerveja e dos runs baratos e fortes. Nessa época ninguém se preocupa com a saúde nem com o decoro; isso, aliado à falta de dinheiro, faz com que se aceite emborcar qualquer coisa. O importante é o efeito, a sensação, independentemente do que possa ocorrer depois.
Lembro-me de que certa vez eu e um amigo, sem dinheiro nem para esse cardápio trivial, compramos um litro de vodka cujo nome por si já revolvia nosso estômago. Pagamos caro por essa ofensa a Baco. No dia seguinte, o simples ato de abrir os olhos provocava uma fuzilaria que lacerava a nossa cabeça.
Na idade adulta também padecemos de ressaca, mas não por escassez de dinheiro ou inexperiência. As preferências nessa idade são outras e geralmente compatíveis com o bolso. Esse é o momento em que entram em cena os destilados, que são nobres e sutis mas não se prestam à celebração da vida.
É preciso chegar ao vinho para perceber que o ato de beber tem um sentido. E que esse sentido, tal como nas cerimônias religiosas, manifesta-se por meio de um ritual.
Depois que alguém escolhe o vinho e se fixa nele, não há mais como descer nem como subir. A descida (cerveja, cachaça, vodka, rum) seria um retrocesso rumo à barbárie; a subida, bem, esta só será possível quando a alma, enfim liberta dos grilhões terrenos, adentrar os páramos da Eternidade.
Lá chegando, não será difícil encontrar Deus diante de uma garrafa de vinho quase tão velho quanto Ele. Um vinho talvez feito com parreiras do Éden, para festejar num momento de reconciliação com os homens as maravilhas da criação. E vai dar para ouvir ao longe, entre ardores e clamores, o diabo tomando absinto.
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Em "A idade do bobo", p. 33.
Leia o livro em http://www.bookess.com/read/14324-a-idade-do-bobo

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