terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

A folia de cada um

Sempre fui um folião enrustido. Como tinha dificuldade de aderir à folia, a família e os amigos me consideravam anticarnavalesco -- o que não é verdade. Brinco por dentro, com uma espécie de euforia espiritual. Pode parecer contraditório falar em espírito a propósito de uma festa que celebra a carne, mas a contradição é apenas aparente. Carne e espírito são no fundo uma coisa só. O desejo é físico, mas pode se sublimar, e nesse caso a alma se funde com o corpo.  Freud que o diga.  
         Carnavalescos como eu têm dificuldade de cair no samba, no passo ou no frevo. Gostam mais de olhar, imunes ao tumulto dos clubes e das ruas.  São diferentes dos que rejeitam o Carnaval com o argumento de que nessa ocasião o homem se animaliza. Animal ele nunca deixou de ser – um animal soterrado por séculos de civilização. A festa é o meio de deixar emergir a “fera” aprisionada. Ou isso, ou a neurose, a psicose e outros males a que o progresso nos conduz. É preciso vez por tirar a máscara de bons moços.   
         O carnavalesco enrustido compreende a necessidade de liberar o que há em nós de instintivo. Não só compreende como sente um pouco de inveja dos que fazem isto sem inibições, entregando-se sem reservas à alegria. O que ele tem não é moralismo, é pudor, cuja manifestação visível é a timidez. Ao perceber isso, os outros o provocam e às vezes o humilham.
Não adianta. Nada o faz balançar o corpo, nem mesmo os acordes iniciais de “Vassourinhas" (essa música sempre me pareceu um dos maiores símbolos do Carnaval pelo seu poder de contagiar as massas; nos clubes ou nas ruas, quando tudo parece monótono, ela sempre dá alguma voltagem à animação). 
         A tendência do enrustido é ver o Carnaval como nostalgia. Nostalgia do presente, pelo momento que escapa, e a óbvia nostalgia do passado, pela lembrança de outros carnavais. Na sua imaginação, eles eram melhores do que os de hoje.
É como se naquele tempo não houvesse tanta agitação ou maldade e fosse possível brincar sem maiores riscos. As mulheres pareciam mais pudicas; e as músicas, cheias de um romantismo que convidava aos devaneios de um grande amor (mesmo que esse amor, como diz a letra da canção, desapareça com a fumaça). Para o nostálgico, que é parente do melancólico, tudo que se distancia da realidade é melhor.
         Crença ilusória. Os carnavais do passado não são diferentes dos de agora. Cada época imprime à festa a sua marca, mas o significado profundo permanece o mesmo. Quando eu era menino, costumava ouvir relatos de morte nos salões devido aos porres de lança-perfume; ou de agressões, provocadas por ciúme, que terminavam em assassinatos. Sob o aparente romantismo latejava a febre das grandes paixões, potencializadas pela música e as drogas.
Vou assistir à festa pela televisão, de olho também na crise que o país atravessa. Espero que ela não tenha a força de inibir as pessoas, que veem na festa a possibilidade de esquecer por uns dias o desemprego, os preços altos e os escândalos que ora pipocam. O País está marcado por essas mazelas, que o têm sistematicamente afligido e parece que não vão desaparecer tão cedo. É preciso uma dose grande de esquecimento e alegria para depois, com a lucidez possível, enfrentar o que vem por aí.

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A esquecida