Há
alguns anos meu pai me destinou uns papéis que escrevera pouco depois de se
aposentar. Guardei-os, ou melhor, deixei-os amarelecendo numa pasta onde havia
outras lembranças suas (inclusive a letra e música de uma valsinha que ele
compôs quando nasci – coisas da emoção do primeiro filho).
Um dia
abri a pasta e li o material. Eram recortes autobiográficos enfocando pessoas
da família e eventos que o marcaram. Estavam ali o convívio com os irmãos da
mesma faixa de idade (a família era muito numerosa); os perfis do pai e da mãe;
a dolorosa lembrança do cerco homossexual a que ele e o irmão Zé Maria foram
submetidos por dois “piedosos” amigos da família; o ambiente provinciano com o
que tem de estreito e maledicente; a ida precoce para o Seminário, que o marcou
sobretudo por lhe haver despertado o gosto pela leitura e pelo latim.
Depois veio o exercício do
magistério em Campina Grande, para onde a família se mudou (vinda de Santa
Rita) a fim de trabalhar no Colégio Diocesano Pio XI. A diocese entregara a
direção do estabelecimento ao meu tio Emídio Viana, que confiou a parte dos
irmãos tarefas docentes e administrativas. Em seguida o “velho” passou a
ensinar também no Colégio Estadual da Prata, num tempo em que o ensino público tinha
eficiência e visibilidade.
Nesse ínterim ocorreu a malograda
experiência política, que ele refere com algum ressentimento (sobretudo pela
ingratidão de algumas pessoas) mas sem desencanto; não era mesmo essa a sua
vocação.
Todo relato autobiográfico é um
acerto de contas consigo mesmo, e o dele não foge à regra. Por exemplo: a culpa
permeia as confissões sobre um relacionamento que resultou na gravidez da
parceira e, posteriormente, na morte da criança. A causa? Gastroenterite e
desidratação, agravadas pela “falta de compromisso” do pai. Deve ter sido
difícil para ele contar essa história, mas sem o propósito de dizer a verdade
não se faz boa literatura (sobretudo confessional). O autor prometeu provar que
a culpa pela morte da criança fora menos dele do que da mãe – mas não encontrei
as páginas em que isso deveria ser feito. Não sei se extraviaram ou se não
chegaram a ser escritas.
O fato é que certo dia me dispus a
digitar aquelas páginas amareladas e inseri-las num blog. Era um dever meu para
com ele, embora eu não achasse que seu propósito fosse publicá-las. Ele as
escreveu em parte pelo gosto da rememoração, em parte pela necessidade de se
libertar de seus fantasmas.
Mas a par dessa função catártica,
que atinge também o leitor, o texto tem qualidades literárias. São visíveis
nele a precisão descritiva de lugares e pessoas, o questionamento sobre o valor
de práticas religiosas que se resumem aos rituais, a ironia com que investe
contra o olhar preconceituoso da sociedade. Tudo num português não apenas
correto como também expressivo; e com uma ironia que é a marca do seu estilo.
Lendo o texto, adquiri algum
conhecimento sobre a minha pré-história. O pai, antes de se investir desse
papel (e mesmo depois), é um homem com suas fraquezas, temores, pequenas ambições.
Conhecê-lo na intimidade não “destrói a imagem” – mesmo porque a imagem tem
pouco a ver com o modelo que a inspira. Deparar-se com o homem é a melhor maneira
de conhecer (e amar) o pai.
(Você pode ler o blog de João Viana em:
https://memoriasdejoaoviana.wordpress.com/
(Você pode ler o blog de João Viana em:
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