sábado, 16 de março de 2019

Para além da imagem


             Há alguns anos meu pai me destinou uns papéis que escrevera pouco depois de se aposentar. Guardei-os, ou melhor, deixei-os amarelecendo numa pasta onde havia outras lembranças suas (inclusive a letra e música de uma valsinha que ele compôs quando nasci – coisas da emoção do primeiro filho).
           Um dia abri a pasta e li o material. Eram recortes autobiográficos enfocando pessoas da família e eventos que o marcaram. Estavam ali o convívio com os irmãos da mesma faixa de idade (a família era muito numerosa); os perfis do pai e da mãe; a dolorosa lembrança do cerco homossexual a que ele e o irmão Zé Maria foram submetidos por dois “piedosos” amigos da família; o ambiente provinciano com o que tem de estreito e maledicente; a ida precoce para o Seminário, que o marcou sobretudo por lhe haver despertado o gosto pela leitura e pelo latim.
           Depois veio o exercício do magistério em Campina Grande, para onde a família se mudou (vinda de Santa Rita) a fim de trabalhar no Colégio Diocesano Pio XI. A diocese entregara a direção do estabelecimento ao meu tio Emídio Viana, que confiou a parte dos irmãos tarefas docentes e administrativas. Em seguida o “velho” passou a ensinar também no Colégio Estadual da Prata, num tempo em que o ensino público tinha eficiência e visibilidade.
          Nesse ínterim ocorreu a malograda experiência política, que ele refere com algum ressentimento (sobretudo pela ingratidão de algumas pessoas) mas sem desencanto; não era mesmo essa a sua vocação.
          Todo relato autobiográfico é um acerto de contas consigo mesmo, e o dele não foge à regra. Por exemplo: a culpa permeia as confissões sobre um relacionamento que resultou na gravidez da parceira e, posteriormente, na morte da criança. A causa? Gastroenterite e desidratação, agravadas pela “falta de compromisso” do pai. Deve ter sido difícil para ele contar essa história, mas sem o propósito de dizer a verdade não se faz boa literatura (sobretudo confessional). O autor prometeu provar que a culpa pela morte da criança fora menos dele do que da mãe – mas não encontrei as páginas em que isso deveria ser feito. Não sei se extraviaram ou se não chegaram a ser escritas.
           O fato é que certo dia me dispus a digitar aquelas páginas amareladas e inseri-las num blog. Era um dever meu para com ele, embora eu não achasse que seu propósito fosse publicá-las. Ele as escreveu em parte pelo gosto da rememoração, em parte pela necessidade de se libertar de seus fantasmas.
           Mas a par dessa função catártica, que atinge também o leitor, o texto tem qualidades literárias. São visíveis nele a precisão descritiva de lugares e pessoas, o questionamento sobre o valor de práticas religiosas que se resumem aos rituais, a ironia com que investe contra o olhar preconceituoso da sociedade. Tudo num português não apenas correto como também expressivo; e com uma ironia que é a marca do seu estilo.
           Lendo o texto, adquiri algum conhecimento sobre a minha pré-história. O pai, antes de se investir desse papel (e mesmo depois), é um homem com suas fraquezas, temores, pequenas ambições. Conhecê-lo na intimidade não “destrói a imagem” – mesmo porque a imagem tem pouco a ver com o modelo que a inspira. Deparar-se com o homem é a melhor maneira de conhecer (e amar) o pai.

(Você pode ler o blog de João Viana em:
https://memoriasdejoaoviana.wordpress.com/



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O silêncio do inocente