quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Jogos da verdade


       W. J. Solha subintitula seu novo livro, “Vida aberta”, de “tratado poético-filosófico”.  É um subtítulo estranho, pois em princípio filosofia e poesia se excluem – ou, pelo menos, têm muito pouco em comum. Filosofar é basicamente especular sobre o sentido do homem e do mundo, o que demanda o uso de uma linguagem lógica, unívoca, “transparente”. Já poetar é antes de tudo expressar a subjetividade por meio de uma linguagem impregnada de afetos e emoções. Nesse caso prevalece a ambiguidade dos signos, marcados por desvios que comprometem o rigor analítico e conceitual. Como então falar num tratado “poético-filosófico”?
        Se perguntassem isso ao autor, penso que ele não saberia (muito menos quereria) responder. Seu livro se propõe justamente a romper a barreira entre essas duas modalidades textuais. A obra não se encaixa em nenhum modelo, pois o que traz à tona é uma anárquica mistura de personalidades artísticas, sistemas filosóficos, correntes estéticas, num apanhado que resume a visão do autor sobre o homem e o mundo. Nela razão e inconsciente se aliam para produzir um pensar que em que a luminosidade parece arbitrada pelo caos (ou vice-versa). Solha nos traz uma Suma (não teológica, mas escatológica) em que, num jato, procede ao questionamento de uma série de conceitos e crenças produzidos ao longo da Historia.  
            Sua vasta erudição concorre para a amplitude das referências trazidas à obra, mas toda essa soma de conhecimentos apenas confirma o quão insuficiente é o saber humano. A vida transborda dos conceitos, como disse São Tomás de Aquino, e certamente por isso o poeta/filósofo (ou o contrário) não pretende enunciar nenhum tipo de verdade. Diz ele, a certa altura: “...quero,/sabendo,/esse não saber, sabendo, que faz uma aranha,/ feito extraterrestre,/ passar a fiar, sem mestre”. “Não saber, sabendo” é o fundamento socrático das suas especulações, que emergem como um enlace engenhoso e lúdico entre forma e sentido.  
           Antidiscursividade, jogos fonéticos, enumeração caótica respondem pelo que há de poético no texto. O leitor se surpreende com os achados, que apesar de às vezes parecerem gratuitos (ditados pela rima) acabam se revelando descobertas originais. A originalidade se evidencia sobretudo nas comparações, em que se estabelecem nexos imprevistos. Assim é, por exemplo, que “... a mulher... pode não ter o abecê,/ mas seu corpo engendra... um bebê, / como alguém que toque de ouvido... e faça parte – do que duvido – da... Sinfônica... de Stugart (...).” O discreto ceticismo sublinha o inusitado  da aproximação, que, como tantas outras, parece não ter nenhum vínculo.
            Mas esse é o papel da linguagem em sua função poética. Enlaçar aspectos do real por meio de analogias que só o artista percebe, em busca de uma presumível origem comum (ou de origem alguma); superar as dicotomias por meio da representação, que busca dar forma ao caos; “abrir a vida” com imaginação e ousadia, associando o espírito crítico à fantasia poética para com isso fornecer do homem uma imagem o mais possível fiel. Como Solha faz magistralmente neste “Vida aberta”.

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