Em certo momento de “Coringa”, o
personagem principal afirma que sua vida é uma comédia. Isso parece incongruente
para quem lhe acompanha a sofrida trajetória, mas resume bem o espírito do
filme: mostrar como o trágico e o cômico podem se confundir. O riso do personagem
é um exemplo disso. Não passa de um conjunto de esgares compulsivos que nada trazem
de alívio ou gozo espiritual; são um sintoma da doença neurológica que o
acomete. Lembram a “ironia infausta” de que fala Augusto dos Anjos em “Monólogo
de uma Sombra”. Quem é o Coringa, afinal, senão uma Sombra que monologa em
busca de amigos, sucesso e amor? A vida lhe nega tudo isso.
Coringa não tem talento humorístico e
jamais seria um astro de stand up, como era seu sonho. Na única vez em que
tenta, expõe-se ao ridículo. Está mais para palhaço. Um humorista ri das falhas
dos outros, enquanto que um palhaço faz os outros rirem das suas (sejam elas
simuladas ou não).
O fracasso do personagem nivela-o aos
muitos palhaços que em cidades como Gotham City (emblema das metrópoles capitalistas)
sobrevivem à margem do sistema. Ele mora num apartamento apertado, sujo, e depende
do governo para tomar os sete remédios de que precisa a fim de não enlouquecer de
uma vez. É um solitário a quem faltam pai e mãe. Seus algozes são o egoísmo e a
indiferença de uma sociedade cujos membros não enxergam os outros (em dado
momento, o personagem se queixa à assistente social de que ela nunca prestou atenção
ao que ele disse).
Tudo no filme funciona bem: a música
sombria, wagneriana, que sublinha o clima agônico da narrativa; o visual trash,
que acentua o lixo no qual os “palhaços” se apertam num simulacro de vida; a
interpretação de Joaquin Phoenix, modulada entre o compassivo, o histriônico e
o ferozmente mordaz com que, no final, o personagem celebra o encontro consigo
mesmo. A direção explora com êxito espaços decadentes da metrópole – becos,
corredores e escadarias onde Coringa (numa espécie de paródia dos musicais
hollywoodianos) encena a sua coreografia de dor.
Os críticos costumam apontar a
identificação que existe entre Coringa e Batman, o super-herói que vai combatê-lo.
Lembram como, por diversas vezes, um salva o outro do perigo. A nenhum dos dois
interessa que o outro morra, pois são na verdade duas faces de um mesmo ser. O
bem só se define em contraste com o mal.
Essa é a explicação mais comum para o
empenho de ambos em que o adversário sobreviva. Sem desmenti-la, o filme sugere
outra. É numa das sequências finais, quando o menino Bruce (que viria a ser o Batman)
olha desalentado os pais mortos. Essa orfandade o identifica com o rival e o
torna capaz de compreendê-lo. A
percepção de que a ambos foi infligido o mesmo tipo de perda, em razão da frieza
de uma sociedade desumana, mostra a cada um que não está no outro o real inimigo.
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