sábado, 13 de fevereiro de 2021

O complô

 

Não se sabia se aquilo era um fórum, uma assembleia ou um bate-boca de desocupados. O certo é que estavam reunidos uns tipos estranhos – umas figuras! A primeira a falar foi Metáfora, que desde o início, contra a opinião de Metonímia, autointitulara-se chefe do grupo:

Amigos, eu aqui sou a cabeçaou “o cabeça”, como queiram. Precisamos reagir. Basta de espoliação. O Escritor nos usa o tempo todo, e depois cabe somente a ele a glória. Ora, nós é que somos imortais. Queremos os nossos direitos.

– As figuras, unidas, jamais seremos vencidas... – entoou Silepse. Mal ensaiava o coro, no entanto, foi interrompida por Metonímia, que resmungou:

         – Não aceito o seu cajado, ó Metáfora. Como podemos escolher um líder que o tempo todo muda de sentido? O cabeça aqui devo ser eu.

– Mas que arrogância! – objetou Metáfora. – Até para dizer isso você me usa. “Cabeça” é metáfora. como sou mesmo importante?

Metonímia não se deu por rendida:

– O seu destino é ser como aquela ali – e apontou ao longe Catacrese, que desgastada e sem brilho jazia no olho da rua, ou seja, num lugar-comum.

– Mas sabe por que aconteceu isso com ela? – insistiu Metáfora. – Porque se deixou usar demais. Agora não impressiona nem comove. E será esse o nosso destino se não nos rebelarmos agora contra o Escritor. Que ele reconheça a nossa força e o nosso brilho ou, então, que fique de uma vez nos braços daquela outra – e apontou desdenhosamente Gramática, que a tudo assistia, impassível, num recanto da sala.

A essas palavras, um frisson percorreu a assembleia. Cochichos, uivos, gritos marcaram a adesão ao ponto de vista de Metáfora (o que fez Ironia, com um sorriso maroto, sublinhar a calma que havia no ambiente). Era preciso fazer ver ao mundo, com todas as letras, como elas sempre foram exploradas pelo Escritor. se atribuía a ele o mérito pelos textos que escrevia, mas de onde vinham o vigor e a beleza de suas produções? Vinham delas, figuras, que não mereciam do ingrato nem um registro de rodapé.

Cada uma quis então externar o seu ressentimento. Hipérbato foi o primeiro a falar: “De tal exploração cansei!”. Essa queixa só exacerbou o ânimo de Hipérbole: “Vamos prendê-lo e crucificá-lo!!”. Felizmente essa conclamação não sensibilizou a todos, esbarrando no bom senso dos mais ponderados. Lítotes preferiu comentar que o Escritor, de fato, não era muito honestoopinião compartilhada por seu pai, Eufemismo. Elipse nada disse, mas fez questão de dar a entender o que pensava. Perífrase começou, fleumática: “Colegas, antes de manifestar o meu juízo sobre o assunto desta pendência, o qual pretendo seja o mais isento possível, levando em conta não apenas os argumentos aqui apresentados por Metáfora, como também...” – mas o auditório, aos gritos de “Vamos aos finalmentes!”, não deixou que ela terminasse.

Anacoluto foi sucinto: “O Escritor, vamos dar cabo dele” – e esse apelo, conquanto ferisse os ouvidos de Eufonia (que se retirou, aborrecida, alegando questão de ordem), concorreu para que o auditório tomasse uma decisão: trazer o Escritor a plenário e pedir-lhe que, dali em diante, reconhecesse e informasse a todos de quem dependiam os méritos de seus textos. Ou isso, ou o abraço frio de Gramática.  “Quero ouvi-lo dizer com as próprias palavras que os reais criadores somos nós” – enfatizou Pleonasmo sob o aplauso geral, ao mesmo tempo que Sinestesia murmurava para si, amedrontada: “Ih!... Sinto cheiro de barulho.”.

Pouco depois o Escritor entrava na sala e ouvia as reclamações do grupo. Enquanto Metáfora lhe anunciava a sublevação e as opções que lhe restavam, ele podia ver do outro lado Gramática sorrindo e lhe mostrando as algemas – umas algemas simbólicas, é certo, disfarçadas num monte de regras que pareciam ao Escritor a morte da invenção e da ousadia.

– Seja o que for que vocês queiram, eu cedo – acabou por dizer. – De agora em diante, a glória do que eu escrever será de vocês. Mas tem o seguinte – seguiu-se uma pausa tensa, em que cada figura arregalou os ouvidos e os olhos: – De vocês quero também o sangue, os nervos, os sonhos e o medo de morrer. Sem essa vibração e sem esse temor, que são o combustível de tudo que escrevo, nenhuma de vocês me serve; nenhuma de vocês funciona – assim como um corpo não existe sem desejo e sem alma.

            Ouvindo tais palavras, Metáfora desabou. Literalmente.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Demissão exemplar

 

            Donaldo Trump apresentou durante vários anos o programa “O aprendiz” na NBC americana. Nele o ex-presidente avaliava candidatos que pretendiam vencer no mundo corporativo, medindo-lhes atributos como ousadia, planejamento, espírito empreendedor. Caso o candidato se mostrasse inapto em um desses quesitos, receberia do apresentador uma sentença que acabou virando um bordão: “Você está demitido!”.

        Há alguns dias a América demitiu Trump. O povo americano derrotou-o em eleições limpas e, tudo indica, pode impedi-lo de se candidatar em próximos pleitos. O que deu errado na estratégia do guru empresarial que, na gerência do governo americano, não foi capaz de revelar alguns dos atributos que costumava cobrar de outras pessoas?

        Li que a maior influência na formação do ex-presidente veio do seu pai. O velho detestava perder e inculcava esse temor nos filhos. Queria que cada um deles fosse um “matador” – metáfora que sugere a disposição feroz e inclemente de vencer mesmo ao custo de destruir os adversários.

         A lição paterna frutificou no menino Trump, que passou a cultivar a obsessão do triunfo a qualquer preço e custo. Essa mentalidade até pode funcionar no mundo corporativo, onde eventuais rasteiras nos adversários ficam circunscritas aos limites das empresas. Mas é extremamente arriscada no universo político, que exige de seus atores um amplo compromisso com a coletividade. Para medir a prática desse compromisso existe a imprensa, que tende a esquadrinhar com um faro de pitbull faminto o comportamento dos eleitos.

        A derrota de Trump não deixa de representar uma lição. Mostra que a luta pelo poder não é um vale-tudo no qual a mentira, o cinismo e a arrogância vigoram impunemente. O presidente derrotado sustentou até onde pôde a mentira de que houvera fraude nas apurações. Ou melhor, até onde ficou claro o objetivo dessa inverdade: incutir nos aliados uma indignação que os levasse a um protesto radical, como foi a invasão do Capitólio. Cego para permanecer no poder, Trump não percebeu o risco e a gravidade de tal sublevação, da qual resultaram tiros, depredações e mortes.

         Fala-se agora que, voltando aos negócios, ele deve investir num canal de TV. Ou comandar uma nova versão de “O aprendiz”, desta vez acoplando o programa ao seu propósito de voltar à Casa Branca em 2024. Essa possibilidade não deixa de ser irônica. Com que credibilidade ele vai dar conselhos às pessoas sobre como serem profissionais vitoriosos? Isso implicaria preparar também para a derrota, o que o ex-presidente mostrou que não sabe fazer. Ele perdeu feio e mal, possivelmente sepultando uma carreira que poderia ter continuidade caso o fracasso fosse encarado como um acidente de percurso. A empáfia e a cega obstinação pela vitória não o permitiram enxergar isso.

          O ex-presidente se mostrou pouco resiliente  (para citar um conceito caro aos gurus da autoajuda) e destituído de visão estratégica. Além disso, por arrogância e arrivismo, não hesitou em atropelar princípios éticos e valores tradicionalmente caros ao povo americano – como a democracia. Essa mistura de ambição e desrespeito acabou transformando-o num “matador”, sim, mas de si mesmo.

O silêncio do inocente