O homem primitivo
não usava pente. Certamente não lhe ocorria a hipótese de que os fios desgrenhados
na sua cabeça poderiam se ajustar à caixa craniana de um modo, digamos, mais decente
e estético. Quando isso aconteceu (com a inevitável influência da mulher, claro),
ele notou que passar o minúsculo objeto pelos cabelos também propiciava um ganho
adicional: retirar parte dos piolhos que lhe infestavam o couro cabeludo.
Teorias à parte, o pente ganhou ao
longo do tempo diversos formatos e acabou se constituindo num dos símbolos da
civilização. À medida que nos distanciamos da barbárie primitiva, fomos aprimorando
o seu desenho e utilizando em sua confecção novos materiais para, com isso, dar
diferentes feições à nossa juba – por mais exígua que fosse.
A coisa chegou a tal pondo que estar
despenteado, ou mesmo mal penteado, virou uma marca de desrespeito social.
Assim como compomos as vestes, precisamos dar aos pelos da cabeça uma aparência
decente a fim de melhor transitar em sociedade. Muito da rejeição aos jovens
nos anos 1960 veio de eles – na tentativa de imitar os Beatles, por exemplo – deixarem
os cabelos crescer e se manterem despenteados (é bom lembrar que o conjunto
inglês ostentava um desalinho aparente, pois tinha a rebeldia como imagem).
Nada tenho contra os pentes; eles é
que não se dão bem comigo. Tanto que, na primeira oportunidade, costumam
escapar da minha vista e sobretudo do meu bolso. Não conto as vezes em que isso
ocorreu, e o pior: nunca descobri “como” nem “por que” isso ocorre. O fato é que
um belo dia (para falar a verdade, nem tão belo assim), enfio as mãos nos
bolsos e não dou com eles. Escarafuncho as gavetas e prateleiras onde costumo
guardá-los, e nada.
Esse tipo de acontecimento já foi
motivo de conflitos aqui em casa. Para preservar a harmonia conjugal, minha
mulher passou a comprar cartelas com vários pentes. Esperava com isso compensar
a minha tendência a perdê-los.
Mas tudo fica em paz por um tempo, e
invariavelmente chega o momento em que se repete o fenômeno: meto as mãos nos
bolsos e não consigo encontrar o meu. Envergonhado, peço um de empréstimo a
ela, que aproveita a ocasião para criticar o meu descuido. De novo?! Como pode
uma pessoa ser tão desatenta?! Deve ter a cabeça no mundo da lua!
Não, minha cabeça está aqui mesmo,
embora despenteada. O problema é que ainda não se descobriu um meio de guardar
com segurança, e manter sempre ao nosso alcance, esse objeto minúsculo e
esquivo com que nos habituamos a acomodar a rebelde pilosidade que se deposita
sobre a nossa caixa craniana.
Parece haver um simbolismo na tendência
que tem o pente de desaparecer da nossa vista. A facilidade com que o deixamos
cair, não se sabe onde, mostra que o acaso não incide apenas nos grandes gestos
humanos. Também atua em eventos banais, cujo efeito é gerar pequenas aporrinhações
no espaço doméstico. O somatório delas, se não conduz à tragédia, pode aos
poucos azedar o convívio. Precisamos então fazer de tudo para evitá-las.
Para aliviar o clima, prometo à mulher
não mais perdê-los – mesmo sabendo que será difícil cumprir a promessa. Ouras
perdas haverá, e serei novamente objeto de ácidas repreensões. Consola-me saber
que, se os procuro em bolsos vazios, é porque ainda preciso deles. Nem que seja
para ajeitar os poucos fios que me ligam a um tempo no qual eu me orgulhava de
uma vasta cabeleira. Esse pensamento me consola e até me encoraja a proclamar,
na surdina: “Vão-se os pentes e fiquem (ainda que ralos) os cabelos!”.
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