quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Sobre pentes e cabelos

 

          O homem primitivo não usava pente. Certamente não lhe ocorria a hipótese de que os fios desgrenhados na sua cabeça poderiam se ajustar à caixa craniana de um modo, digamos, mais decente e estético. Quando isso aconteceu (com a inevitável influência da mulher, claro), ele notou que passar o minúsculo objeto pelos cabelos também propiciava um ganho adicional: retirar parte dos piolhos que lhe infestavam o couro cabeludo.  

          Teorias à parte, o pente ganhou ao longo do tempo diversos formatos e acabou se constituindo num dos símbolos da civilização. À medida que nos distanciamos da barbárie primitiva, fomos aprimorando o seu desenho e utilizando em sua confecção novos materiais para, com isso, dar diferentes feições à nossa juba – por mais exígua que fosse.   

           A coisa chegou a tal pondo que estar despenteado, ou mesmo mal penteado, virou uma marca de desrespeito social. Assim como compomos as vestes, precisamos dar aos pelos da cabeça uma aparência decente a fim de melhor transitar em sociedade. Muito da rejeição aos jovens nos anos 1960 veio de eles – na tentativa de imitar os Beatles, por exemplo – deixarem os cabelos crescer e se manterem despenteados (é bom lembrar que o conjunto inglês ostentava um desalinho aparente, pois tinha a rebeldia como imagem).      

          Nada tenho contra os pentes; eles é que não se dão bem comigo. Tanto que, na primeira oportunidade, costumam escapar da minha vista e sobretudo do meu bolso. Não conto as vezes em que isso ocorreu, e o pior: nunca descobri “como” nem “por que” isso ocorre. O fato é que um belo dia (para falar a verdade, nem tão belo assim), enfio as mãos nos bolsos e não dou com eles. Escarafuncho as gavetas e prateleiras onde costumo guardá-los, e nada.

          Esse tipo de acontecimento já foi motivo de conflitos aqui em casa. Para preservar a harmonia conjugal, minha mulher passou a comprar cartelas com vários pentes. Esperava com isso compensar a minha tendência a perdê-los.

           Mas tudo fica em paz por um tempo, e invariavelmente chega o momento em que se repete o fenômeno: meto as mãos nos bolsos e não consigo encontrar o meu. Envergonhado, peço um de empréstimo a ela, que aproveita a ocasião para criticar o meu descuido. De novo?! Como pode uma pessoa ser tão desatenta?! Deve ter a cabeça no mundo da lua! 

           Não, minha cabeça está aqui mesmo, embora despenteada. O problema é que ainda não se descobriu um meio de guardar com segurança, e manter sempre ao nosso alcance, esse objeto minúsculo e esquivo com que nos habituamos a acomodar a rebelde pilosidade que se deposita sobre a nossa caixa craniana.

          Parece haver um simbolismo na tendência que tem o pente de desaparecer da nossa vista. A facilidade com que o deixamos cair, não se sabe onde, mostra que o acaso não incide apenas nos grandes gestos humanos. Também atua em eventos banais, cujo efeito é gerar pequenas aporrinhações no espaço doméstico. O somatório delas, se não conduz à tragédia, pode aos poucos azedar o convívio. Precisamos então fazer de tudo para evitá-las.

         Para aliviar o clima, prometo à mulher não mais perdê-los – mesmo sabendo que será difícil cumprir a promessa. Ouras perdas haverá, e serei novamente objeto de ácidas repreensões. Consola-me saber que, se os procuro em bolsos vazios, é porque ainda preciso deles. Nem que seja para ajeitar os poucos fios que me ligam a um tempo no qual eu me orgulhava de uma vasta cabeleira. Esse pensamento me consola e até me encoraja a proclamar, na surdina: “Vão-se os pentes e fiquem (ainda que ralos) os cabelos!”.

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