“O pássaro secreto”, de Marília Arnaud, é o relato de uma crise. O romance se estrutura como uma parte propriamente narrativa, em que a personagem principal, Aglaia Negromonte, relata cronologicamente os fatos ligados à sua vida, e outra com características de um diário. Nessa última a personagem reflete sobre a sua experiência no lugar a que é conduzida por força das ocorrências que, em grande parte por culpa dela própria, lhe destruíram a sanidade. A bem urdida alternância entre os dois segmentos sugere-nos, desde o início, que desfecho lhe seria destinado.
O
que deflagra o colapso da personagem e o seu rompimento com o mundo é saber que
tem uma irmã fruto de uma ligação do pai fora do casamento e que essa irmã
viria morar com a família. A existência dessa parente, em tudo distinta dela,
leva Aglaia a se deparar com o que há de pior em si. Desperta-lhe inveja, ciúme
e sobretudo um automenosprezo intensificado por sua índole melancólica –
sugerida pela referência a “uma passageira crise saturnina”, que ela qualifica
como “própria da idade”. Não tão
passageira, pois Saturno – o planeta de rotação mais lenta – é o regente interminável
dos temperamentos melancólicos.
As
inúmeras referências a personagens shakespearianos nos fazem pensar no livro como
uma tragédia romanceada, em que a hybris da personagem principal se metaforiza
num pássaro escuro e hediondo – a Coisa. Esse pássaro
horrendo não consegue levantar voo e mantém a personagem presa a seus complexos
e medos: “...toda feita de asas, penas e bicos, (a Coisa) não sabia voar em
alturas nem cantar o mais breve pipilo, e rastejava como uma serpente, e me
socava o peito com cascos de bicho bruto”.
Do
ponto de vista psicanalítico, a Coisa é o inomeável, o indizível, o que não
pode ser formulado, entre outras razões, por conter uma insuportável carga de
verdade. É a projeção de um eu em desarmonia com os outros e consigo mesmo. Está
no nível das “coisas
indizíveis (...), tão íntimas que compartilhá-las é o mesmo que arrancar o
coração e colocá-lo sobre a mesa, ‘Veja, é feio, frágil, sangrento, o que faço
com ele?’”. A Coisa é um espelho da personagem presa em seu mutismo e incapaz
de verbalizar com clareza o que sente e o que supõe que as pessoas sentem diante
dela.
Aglaia demonstra desde
criança um enorme fascínio pelas palavras, que ela supunha estarem “por trás de
tudo, uma espécie de ponte entre mim e o mundo”. Concorre para esse
deslumbramento a influência do pai, Heleno Negromonte, que lhe desperta o gosto
pelos livros e a introduz na leitura dos clássicos. Com o tempo, à medida que Heleno Negromonte se
alheia das obrigações da casa e imerge em seu exílio literário, a admiração da
filha por ele em muito diminui. Livresco e superficial, o pai leva-a a perceber
que o discurso pode ser também o lugar da mentira, do engodo, da representação.
A relação da personagem com a figura
paterna é então ambígua; divide-se entre a idolatria e o desprezo. Ator
profissional, Negromonte vive para cultuar a própria imagem. Em sua narcísica
prepotência, “por acreditar que as pessoas eram o que falavam, decretava a
forma como devíamos nos expressar”. Essa atitude concorre para intensificar em
Aglaia a desconfiança quanto ao valor das palavras.
A despeito do
ressentimento com a figura paterna, a personagem disputa o amor do pai com a
meia-irmã que adentra a casa com o seu charme francês. A preferência de Heleno Negromonte pela outra
potencializa o ódio de Aglaia ao pai, que a rejeita e deve pagar por isso: “Um
dia, quem sabe, meu pai arrancaria os próprios olhos por haver desprezado a
filha que verdadeiramente o amava”.
É significativo
que a personagem deseje para ele o destino de Édipo, culpando-o por um fracasso
familiar que também se deve à esposa acomodada e passiva que aceita sem
protesto a traição do marido. Esse quadro acentua na filha o sentimento de
orfandade: “Cheguei a supor que fora adotada. Custava-me crer que eu era filha
daquela mãe de traços à Isabelle Adjani, daquele pai de olhos azuis e porte de
deus romano”.
A narrativa em
primeira pessoa nos faz desconfiar dos juízos da personagem sobre os outros e
sobre si mesma. Muito do que ela percebe nas pessoas é projeção da imagem que faz
dela própria. Sua feiura aparece como antítese simétrica da beleza e da autoconfiança
que enxerga na meia- irmã, que a seus olhos parece irresistível e perfeita: “...uma
espécie de luz (...) parecia incidir sobre Thalie, distinguindo-a do restante,
como se o seu mundo fosse um palco, e ela, a personagem de um monólogo sem fim. Não, estou enganada.
Aquela luz jorrava de dentro dela (...)”. Tal impressão se fortalece na medida
em que a meia-irmã conquista o amor do primo pelo qual Aglaia é apaixonada.
Um ponto alto do
romance é a linguagem. A autora adota um tom expressionista na descrição de lugares
e sobretudo de pessoas. Por meio desse recurso, ressalta a disposição psicológica
da personagem principal, que infunde na apreciação dos parentes dos quais não
gosta (e são todos, com exceção da avó Sarita) o ressentimento que tem do mundo.
O romance como
gênero é uma estrutura aberta, que permite a incorporação de múltiplos elementos
associados à vivência dos personagens e mesmo do autor. Seu propósito é “criar
um mundo” que seja espelho deste em que nos movemos, com a sua diversidade social,
cultural, geográfica e histórica.
Marília Arnaud explora com maestria essa
possibilidade, introduzindo na trama uma ampla gama de informações e reflexões sobre
temas que tradicionalmente provocam o ser humano (casamento, amizade, ciúme,
morte). Faz isso com equilíbrio e um apreciável domínio do tempo, de modo a
preservar a tensão narrativa e nos manter presos ao percurso autodestrutivo da
personagem principal.
No desvendamento da alma de Aglaia Negromente ecoa a voz do bardo inglês, enformando-lhe a melancólica obsessão e ditando-lhe o dilaceramento interior. Se Shakespeare “inventou o humano”, Marília Arnaud inventou Aglaia para ilustrar o abismo a que ele é capaz de descer quando o ressentimento, o abandono e o desejo de vingança lhe determinam o comportamento.
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