domingo, 1 de maio de 2022

A resistência do olhar



           A máscara é por excelência o símbolo da pandemia. Divide as pessoas entre as que seguem a ciência e as que, no rastro do discurso presidencial, desprezam suas orientações. Para além do papel utilitário, é um adereço capaz de traduzir as preferências estéticas dos que a usam (escrevo no presente porque a pandemia ainda não acabou).   

No futuro, a imagem mais eloquente do flagelo provocado pelo coronoavírus será a de pessoas mascaradas. O objetivo, claro, é impedir a contaminação, mas a ele se acrescentam outros efeitos, como o de despersonalizar o indivíduo escondendo-lhe parte do rosto.

O mascarado pandêmico não ri; se o faz, não deixa isso perceptível. Nele as emoções, que normalmente transparecem em todo o semblante, concentram-se no olhar. A mordaça que lhe encobre boca e nariz é uma espécie de recusa à fala, uma opção pelo silêncio opressivo que as circunstâncias lhe impõem.      

Esses detalhes não passariam despercebidos a um artista como Rodolfo Athayde, para quem a máscara é “um véu incompleto que nos protege”. Um véu que vela e ao mesmo tempo revela. Num belo volume recentemente impresso na Gráfica JB, Rodolfo vai ao “Xis” da questão. Reúne intelectuais e artistas paraibanos que, posando de máscaras, mostram na variedade de posturas, figurinos e expressões do olhar diferentes formas de encarar o desafio da contaminação.

No metalinguístico ensaio introdutório à obra, o autor faz uma espécie de resumo do significado das máscaras na sua vida. Inicialmente associadas a mistério e aventura (“A primeira foi a máscara do Zorro que estava por esses lugares”), com o tempo elas lhe penetraram o universo profissional e artístico. Serviram-lhe de tema a trabalho anteriores e acabaram se constituindo num indício do que nos limita na modernidade.  

Vivemos num mundo globalizado, mas isso não nos facilita a comunicação. Quanto maior a proximidade de uns com os outros, mesmo (ou sobretudo) virtual, maior a tendência a escondermos partes de nós. Como enfatiza Rodolfo no referido prefácio, “nem nos conhecemos mais porque são muitas as novidades do outro e o tempo é curto”.

A proposta de “Xis” é, na verdade, a de um desmascaramento. As máscaras nos vestem para nos desnudar. O título da obra remete à onomatopeia por meio da qual comumente se convocam as pessoas a sorrirem quanto vão ser fotografadas. Trata-se de uma ironia que o autor enfatiza iconicamente no desenho da capa – um “Xis” (que é também uma incógnita) confundido com uma máscara semidesfeita.   

Fotografar é cristalizar no tempo imagens que, o mais das vezes, se constituem em testemunhos de uma época. A nossa ficará marcada pela pandemia; ela a muitos tirou a vida, e a outros infligiu prejuízos materiais ou danos psicológicos. Captar nos rostos mascarados o seu efeito é uma forma não apenas de mantê-la na lembrança, mas sobretudo de surpreender na postura e no olhar dos que se mascaram diferentes reações ao trauma que ela representa.    

          Rodolfo se propõe ao registro de “uma pandemia que não resista ao nosso olhar”, seja ele de medo, perplexidade ou desesperança. Faz isso com sucesso, pois a representação artística desses sentimentos é uma forma de se libertar do estigma da doença. Além disso, como é próprio da arte, ela reafirma a capacidade humana de transcender suas limitações e ampliar o autoconhecimento. A pandemia nos legou um saber; depois dela não seremos mais os mesmos. O maior mérito do trabalho de Rodolfo é concorrer para que nos compenetremos disso.

3 comentários:

  1. Com certeza, Somos os mesmos, mas com um novo comportamento pós Pandêmico.

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  2. " A pessoa que volta não é a mesma que partiu..." Parafraseanto Otávio Ianne em seu ensaio sobre Viagens, penso numa analogia, A Viagem enquanto experiência da Pandemia: Não voltamos_ e talvez nunca mais voltaremos _ ao mesmo ponto/Porto .

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O poder da frase