Penso que as mais intensas lembranças da infância são marcadas pelo que dá medo. Existem as de aniversário, viagens, reuniões em família, e todas constituem um repertório gratificante que nos faz ter saudades do tempo em que éramos guris. Mas elas não se imprimem na memória com a força dos eventos que nos deixavam o coração em sobressalto.
Grande
parte deles está ligada aos “fantasmas” da noite e aos tipos conhecidos como “doidos”.
Qual a criança que não chegou a tremer sob os lençóis com medo da visão de
algum ente sobrenatural? Podia ser a imagem de alguém que morreu ou de uma
dessas personagens que povoam as histórias contadas em filmes, gibis ou por pessoas
próximas.
Eu
ouvia das empregadas histórias de crianças perseguidas por entidades
monstruosas que vinham puni-las em razão de algum malfeito. Essa espécie de pedagogia
do horror maltratava como um castigo, e de noite eu me encolhia sob as cobertas
com medo de encarar a escuridão. Sentia os pingos de suor escorrerem pela
barriga, mas não me atrevia a remover o lençol e ficar exposto às tenebrosas visões.
Podia ser a de um vampiro, uma mula
decapitada ou uma tal de La Condessa, que saía de noite do túmulo para perseguir
crianças desobedientes.
Já
os “doidos” eram fantasmas concretos, que povoavam as ruas e não precisavam do
escuro para nos assustar. Geralmente se tratava de pessoas feias e malvestidas,
que associavam a bizarrice da figura a um considerável acervo pornográfico. Os
nomes feios, diga-se a bem da justiça, vinham como resposta às provocações que
faziam a elas.
Tenho vivas as lembranças de alguns desses
tipos. Um deles era Leôncio, que costumava ficar sob uma marquise numa das ruas
mais famosas da cidade. Ele pedia dinheiro aos passantes e descompunha sem cerimônia
os que negavam. “Filho da p...” era das expressões mais leves. Como já o
conheciam, ninguém o denunciava. Sua agressividade ficava mesmo no plano das
palavras, pois nunca se soube que tivesse feito mal a ninguém.
Certa
vez eu passava pela rua com a minha mãe e o vi dirigir-se a nós. Risonho, desdentado,
estendeu a mão me pedindo “um troco” (era assim que ele falava). Na inocência
dos meus oito anos, larguei a mão que me segurava e desandei a correr. Depois
dessa experiência, evitei de uma vez por todas passar por aquela rua.
Mas
a pior experiência foi com “Baleia”, como era conhecida uma mulher que costumava
no fim da tarde passar pela rua onde morávamos. Nada provocava mais a sua ira
do que a menção ao cetáceo com que inventaram de apelida-la. Justamente por
isso os meninos insistiam na cruel designação, o que a fazia correr atrás deles
enquanto aguentasse. Nunca pegou nenhum, e duvido que quisesse mesmo fazer
isso.
Certa
vez, ao voltar de uma padaria perto de casa, percebi com o coração aos pulos que
ela vinha na minha direção e que iríamos cruzar um com o outro. Mudei de
calçada e ela fez o mesmo, atribuindo o meu gesto a uma tentativa de fugir por
tê-la em algum momento provocado. Enquanto se aproximava, vociferou com uma voz
rouquenha e arquejante:
– Diga “Baleia” agora! Diga, se tiver coragem!
Corri
em pânico para casa e lá cheguei “branco”, conforme disse a minha mãe. Deram-me
um copo d´água e buscaram me acalmar enquanto eu tentava explicar o que tinha
acontecido.
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