domingo, 9 de abril de 2023

Imagens sem nexo


 A função da poesia é revelar os objetos sob um novo olhar – isso a gente aprende logo nas primeiras aulas de Teoria da Literatura. O signo poético, por sua opacidade, não estabelece um vínculo direto entre o significante e o significado. Constitui uma palavra-coisa, não uma palavra-sinal – para usar a terminologia de Sartre em “O que é a literatura?”.

A essa opacidade, ou ambiguidade, do signo poético deve-se o seu poder de ir além das representações convencionais. Dela nasce a polissemia, que faz com que o signo se enriqueça em função dos novos nexos que estabelece com a realidade.

Aí mora o perigo, pois muitos confundem essa liberdade polissêmica com a possibilidade de dar às palavras quaisquer sentidos. No afã de enriquecê-las semanticamente não atentam, por exemplo, para a pertinência e o bom senso de certas escolhas no domínio das figuras. Isso por vezes os leva a uma obscuridade que em nada se confunde com a “opacidade” no sentido em que a definem os formalistas russos – o de estranhamento, novidade, fuga ao lugar-comum.

Ferreira Gullar destaca essa característica na poesia de Augusto dos Anjos em um dos melhores estudos já escritos sobre a estética do paraibano. Evocando o formalista russo Viktor Chklóvski, mostra como a estranheza é um dos fatores que nos fascinam na sua poesia.

A estranheza conduz a uma “dificuldade” perceptiva que, em vez obstacular a compreensão, nos convoca à descoberta de novos enlaces de sentido. Pode-se até discordar da visão de mundo do paraibano, mas é impossível não se sensibilizar com o acerto das suas escolhas verbais.        

Se a maior virtude do texto é a clareza, como diz Montaigne, dela se afasta quem se entrega a associações cerebrinas e esdrúxulas entre os signos, como se com isso atingisse aquele “algo mais” que confere eternidade ao estilo.

Há uma enorme diferença entre a transfiguração e a desfiguração do real. No primeiro caso, o real nos aparece sob um novo olhar graças à forma inusitada com que nos é apresentado. É quando as imagens mantêm com ele um tipo de vínculo que, de alguma forma, o torna reconhecível ao mesmo tempo que o amplia e enriquece.

No segundo caso (o da desfiguração), a ousadia das imagens compromete aquele mínimo referencial analógico que confere verossimilhança à representação. As imagens parecem nascer de si mesmas, arbitrárias e autônomas, num jogo maneirista em que o leitor se perde por não ver nelas nexo. É uma espécie de surrealismo manco, desconectado das fontes significativas do inconsciente.

        Há um limite para “ousar” quanto ao metaforismo das representações; às vezes, com a falsa impressão de conferir expressividade ao texto, o autor incide num preciosismo que mais irrita do que impressiona quem o lê. Nesse caso, o que se pretendia poético beira o caricatural. As imagens não chegam propriamente ao estatuto de imagens; limitam-se a um conjunto de objetos destituídos daquela alquimia que conecta a Alma à Natureza – traço por excelência do texto poético.

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