sábado, 8 de abril de 2023

Oração pelos peixes

 

Sempre me intrigou que na Semana Santa não se pudesse comer carne mas se pudesse comer peixe. A carne dos peixes se exclui dessa restrição, embora nossos irmãos do mar sejam tão animais quanto a vaca ou o carneiro. É uma carne mais saudável do que as outras quanto à qualidade da gordura, mas certamente não foi por isso que a Igreja liberou seu consumo em ocasiões como agora. Naquele tempo ninguém tinha ideia do que era colesterol.

Como faz bem tanto ao corpo quanto ao espírito, o peixe é comido sem remorso ao longo de todo o ano. Dos animais não nocivos ao homem, ele é certamente aquele para o qual menos se dirige a nossa piedade. Vejo e ouço protestos contra a morte violenta de bois, carneiros, raposas, ursos, mas raramente escuto uma voz contra a matança dos peixes.

E olhem que a morte deles é uma das mais dolorosas. Ao contrário dos bois ou dos carneiros, que morrem de uma cutelada fulminante e indolor, os peixes se finam aos poucos, em tremores de agonia devido à falta de oxigênio. Matamo-los por necessidade e por lazerpara satisfazer nossas necessidades proteicas e para aliviar as tensões em longas e solitárias pescarias.

Sabe-se que a ligação do cristianismo com esse animal tem razões históricas e também linguísticas. No tempo em que eram perseguidos, os cristãos usavam para se identificar a frase grega “Iesus Christus Theou Yicus Soter”, que em português significa “Jesus Cristo, de Deus o Filho Salvador”. Algumas letras dessa palavra formam a palavra “ichthyus”, que em grego significa “peixe”. Daí o vínculo com a figura do Redentor.

O peixe servia mesmo como elemento de identificação entre os que se incluíam na cristandade. Quando dois cristãos se encontravam, um deles desenhava um arco no chão; se o outro fizesse o mesmo formava-se a imagem do animal marinho, e ambos se reconheciam como “irmãos na fé”. O resultado é que ele se tornou o mais importante alimento consumido na Sexta-Feira Santa, dia em que se recorda a morte de Jesus.

         Por ser a única comida animal permitida nesta época, o peixe ocupa um lugar de destaque no bestiário cristão. Seu sacrifício é um pouco como o de Cristo, que morreu para nos servir de alimento espiritual. Curiosamente, nem sempre foi assim. 

No “Sermão de Santo Antônio ou aos Peixes”, Vieira afirma querer aliviar os peixes “de um desconsolo muito antigo”: o de não estarem, segundo a Lei Eclesiástica, entre os animais que Deus escolheu para serem a ele sacrificados. O motivo dessa exclusão, segundo o jesuíta, é que os peixes podiam ir ao sacrifício mortos, “...e coisa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares”.

É claro que há nessa passagem, como em todo o sermão, um sentido alegórico (a alegoria, “representação de uma coisa por outra”, normalmente comporta um valor moral). Vieira finge se referir aos peixes mas na verdade se refere aos homens, pois a “coisa morta” significa o ser humano como pecador.

Quanto à recusa em levá-los ao altar por irem ao sacrifício mortos, há nisso uma ironia histórica: em respeito às leis da Igreja, hoje eles se sacrificam. Ou não será sacrifício servir de repasto único, nestes dias, para matar a fome de toda a cristandade?

O que não deixa de ser curioso é que a imagem do peixe sem vida, em vez de suscitar piedade, sirva para simbolizar o indivíduo sem . É uma “injustiça” com o animal que, de início, aparecia como um signo da autêntica vivência cristã.  

Deixo aos doutos a tarefa de elucidar essa aparente contradição. Por enquanto, limito-me a pedir mais respeito com os peixes. Certamente ficamos indiferentes ao seu sofrimento porque, ao contrário dos outros bichos, eles ao serem mortos não gemem, não berram nem clamam com o olhar. Mas isso não significa que sofram menos.

Enfim, que o momento é de piedade cristã, façamos por eles uma prece silenciosa. Nem que seja para agradecer a boa digestão.


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O silêncio do inocente