Sempre me intrigou que na Semana Santa não se
pudesse comer carne
mas se pudesse comer
peixe. A carne
dos peixes se exclui dessa restrição, embora nossos irmãos
do mar sejam tão
animais quanto
a vaca ou
o carneiro. É uma carne
mais saudável
do que as outras quanto
à qualidade da gordura,
mas certamente
não foi por
isso que
a Igreja liberou seu
consumo em
ocasiões como
agora. Naquele tempo
ninguém tinha
ideia do que era
colesterol.
Como faz bem tanto ao corpo quanto ao espírito,
o peixe é comido sem
remorso ao longo
de todo o ano.
Dos animais não
nocivos ao homem,
ele é certamente
aquele para o
qual menos
se dirige a nossa piedade.
Vejo e ouço protestos contra a morte violenta de bois,
carneiros, raposas,
ursos, mas
raramente escuto uma voz contra a matança dos peixes.
E olhem que a morte deles é uma das mais
dolorosas. Ao contrário dos bois ou dos
carneiros, que morrem de uma cutelada fulminante e indolor,
os peixes se finam aos poucos, em tremores de agonia
devido à falta
de oxigênio. Matamo-los por necessidade
e por lazer
– para satisfazer nossas necessidades proteicas e para
aliviar as tensões
em longas e solitárias
pescarias.
Sabe-se que a ligação do cristianismo com esse animal
tem razões históricas e também linguísticas. No tempo em que eram perseguidos,
os cristãos usavam para se identificar a frase grega “Iesus Christus Theou
Yicus Soter”, que em português significa “Jesus Cristo, de Deus o Filho
Salvador”. Algumas letras dessa palavra formam a palavra “ichthyus”, que em
grego significa “peixe”. Daí o vínculo com a figura do Redentor.
O peixe servia mesmo como elemento de identificação
entre os que se incluíam na cristandade. Quando dois cristãos se encontravam,
um deles desenhava um arco no chão; se o outro fizesse o mesmo formava-se a
imagem do animal marinho, e ambos se reconheciam como “irmãos na fé”. O
resultado é que ele se tornou o mais importante alimento consumido na
Sexta-Feira Santa, dia em que se recorda a morte de Jesus.
Por ser a única comida animal permitida nesta época,
o peixe ocupa um
lugar de destaque
no bestiário cristão. Seu sacrifício
é um pouco
como o de Cristo,
que morreu para
nos servir
de alimento espiritual.
Curiosamente, nem sempre foi assim.
No “Sermão de Santo Antônio ou
aos Peixes”, Vieira afirma querer aliviar os peixes “de um desconsolo muito
antigo”: o de não
estarem, segundo a Lei
Eclesiástica, entre os animais que Deus escolheu para serem a ele sacrificados. O motivo
dessa exclusão, segundo
o jesuíta, é que
os peixes só
podiam ir ao sacrifício
mortos, “...e coisa
morta não
quer Deus
que se lhe
ofereça, nem chegue aos seus altares”.
É claro que há nessa passagem,
como em
todo o sermão,
um sentido
alegórico (a alegoria, “representação de uma coisa por outra”, normalmente
comporta um valor moral). Vieira finge se referir
aos peixes mas
na verdade se refere aos homens,
pois a “coisa morta” significa o ser humano como pecador.
Quanto à recusa em
levá-los ao altar por
irem ao sacrifício
mortos, há nisso uma ironia histórica:
em respeito
às leis da Igreja,
hoje só
eles se sacrificam. Ou
não será sacrifício
servir de repasto
único, nestes dias,
para matar a fome de toda a cristandade?
O que não deixa de ser curioso é que a imagem do peixe sem vida, em vez de suscitar piedade, sirva para simbolizar o indivíduo sem fé. É uma “injustiça”
com o animal que, de início, aparecia como um signo da autêntica vivência
cristã.
Deixo aos doutos a tarefa de elucidar essa aparente
contradição. Por enquanto, limito-me a pedir mais respeito com os peixes. Certamente
ficamos indiferentes ao seu sofrimento porque,
ao contrário dos outros
bichos, eles
ao serem mortos não
gemem, não berram nem
clamam com o olhar.
Mas isso
não significa que
sofram menos.
Enfim, já que o momento é
de piedade cristã, façamos por eles uma prece silenciosa.
Nem que
seja para agradecer a boa digestão.
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