segunda-feira, 24 de julho de 2023

A cinta


           Trinta anos de casamento, Nicanor pensou em fazer uma surpresa à mulher:

– Que tal a gente voltar ao motel em que dormimos juntos pela primeira vez?

– Motel?! Que ideia!

– Por que não? Vai ser gostoso relembrar a sensação daquele encontro.

Tanto insistiu, que Matilde terminou concordando. Meio a contragosto, é certo, mas não custava satisfazer esse capricho do marido, que ainda veio com outro:

– Você podia vestir aquela cinta vermelha... Lembra?

A mulher aparentemente fez que não ouviu. 

Numa noite de sábado (tal como da primeira vez), inventaram uma mentira para os dois filhos adolescentes e se mandaram para o motel. O letreiro não era mais o mesmo (Nicanor teve a sensação de que piscava menos), e uma parte fora reconstruída. Mas dava para reavivar antigas sensações. 

Pediram um quarto com o mesmo número daquele em que dormiram da primeira vez. O marido achava que isso daria sorte. Depois de passar pela portaria, ele estacionou na garagem que havia ao lado. Era muito escura, certamente para preservar a identidade dos frequentadores.

Mal entraram no quarto, Matilde fez um ar de quem não gostou:

– Hum... O cheiro. Isso está com cara de que há tempos não passa por uma boa faxina. 

Dirigiu-se ao banheiro e voltou de lá com uma expressão escandalizada:

– Venha ver, Nico! 

Puxou o marido até o local.

– Está vendo? Parece até que tem limo.

– Não é tanto assim, Clotilde. Você exagera.

– E o vaso sanitário? Está precisando de uma boa bucha. 

Após uma breve pausa, deliberou: 

– Vamos ligar para a portaria e pedir uma vassoura com detergente.    

– Esqueça o banheiro – ponderou o marido. – Vamos voltar para o quarto.

Tentando fazê-la entrar no clima, ele perguntou sobre o que lhe pedira: 

– Trouxe a cinta?

– Não. O Dr. Amoedo disse que eu devia evitar qualquer tipo de roupa que prejudicasse a circulação. Por causa das varizes. Acabei jogando no armário da despensa.

– Tudo bem, dispensamos a cinta. O importante é que você... se sinta bem.

Esperou que a mulher sorrisse do jogo de palavras, mas ela pareceu nem perceber. Depois de olhar atentamente a cama, Matilde exclamou com um novo ar de protesto:     

– Me deitar aqui!? Deus me livre. Veja o colchão. 

– Não é tão ruim. E você, que é calorenta, pode ficar perto do ar-condicionado.

– Se é que eles costumam limpar o filtro...

Estavam nesse impasse, quando o celular da mulher tocou. Era o filho mais velho:

– Onde vocês estão?

– A gente está num restaurante que seu pai queria muito conhecer.

– Estou ligando por um motivo grave. Desconfio de que Isolda saiu para se encontrar com alguém. Pode ter ido a um motel.

– Como?!  

– Pois é. Ela tentou disfarçar, mas vi que levava aquela cinta, lembra? Aquela que você guarda como uma relíquia erótica dos tempos em que namorava o velho.

Clotilde mal esperou o filho terminar. Desligou e contou a conversa ao marido. Depois, preocupada, comentou: 

– E se ela foi mesmo a um motel?

– Tolice. Não se pode fazer nada. Só não gostei de ela ter levado a cinta.

– Eu devia ter escondido melhor...  

– Deixe. Ela é jovem.

Vendo que estavam perdendo tempo ali, Nicanor teve uma ideia:   

           – Vamos embora? Ainda temos tempo de ir àquele restaurante. 

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O silêncio do inocente