“Barbie”,
o filme, não é brinquedo. Nada tem a ver com a exaltação glamurosa da
boneca que despertou precocemente as meninas para a sua diversidade de papéis –
não apenas o de um simulacro de mãe que cuida de seu bebê, mas o de alguém com
outras versões sociais e capaz de executar diversas tarefas no campo
profissional.
Nisso
está a sua nota feminista, que já aparece no início numa magnífica
paráfrase de “2001, uma odisseia no espaço”. No filme de Kubrick, um
macaco descobre as possibilidades da sua inteligência esmagando com um osso a
carcaça de um animal; é a “aurora do homem”, como chamou o diretor. No de Greta
Gerwig, é uma menina que, também ao som de Richard Strauss, usa a boneca para
destruir as versões bem-comportadas nas quais o machismo (embutido nas próprias
mulheres) se acostumou a representá-la.
Com
isso está dada a largada para a desmitificação do universo da Barbielânda, um
lugar literalmente cor-de-rosa em que todos são afáveis, risonhos, e não se
pensa na morte. Ou não se pensava, pois de repente, no meio de uma dança, a
referência à Indesejada das Gentes aparece na fala da boneca e soa como um
brutal choque de realidade também para as outras Barbies que com ela convivem.
O
filme faz uma crítica bem-humorada ao machismo. Os machos são ridicularizados
na sua inépcia até para fazer coisas tradicionalmente próprias dele, como
distinguir uma onda em que podem surfar. Chamam-se todos “Kens” – um bom recurso
do roteiro para sugerir a padronização do comportamento e a falta de
individualidade.
A
obsessão do “Ken” da Barbie por cavalos sugere quanto no imaginário dos jovens
americanos repercute a figura dos mocinhos do faroeste. Não é à toa que
terminam brigando uns com os outros, o que favorece a volta da hegemonia
feminina na Barbielândia (não será isso uma antevisão do que poderá ocorrer numa
sociedade machista e bélica como a nossa?).
Outro
alvo de crítica no filme são as corporações industriais, tipificadas na Mattel,
empresa que fabrica a boneca. De olho apenas no lucro, os magnatas se
desesperam quando veem a Barbie invadir o mundo real para tentar encontrar o
responsável pelas “imperfeições” que de repente apareceram em seu corpo e na
sua alma. Como ficariam as vendas com essa Barbie humanizada?
Curiosamente,
a fonte da distopia (para usar uma palavra da moda) está na própria empresa. É
uma desenhista que aparece como “uma humana” e não consegue impedir que a sua
crise existencial e materna se reflita nos desenhos que produz. Vivendo uma
relação tumultuada com a filha, ela parece querer romper com o modelo
idealizado segundo o qual a Barbie foi projetada.
“Barbie” é um filme inteligente e divertido. Fascina pela ousadia da sua proposta e por nos fazer refletir sobre o mecanismo que rege a criação de certos ícones do mercado. Sobretudo, mostra como são falsas e frágeis as fantasias que buscam nos afastar da realidade.
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