domingo, 23 de julho de 2023

"Barbie", uma alegoria feminista

 

“Barbie”, o filme, não é brinquedo. Nada tem a ver com a exaltação glamurosa da boneca que despertou precocemente as meninas para a sua diversidade de papéis – não apenas o de um simulacro de mãe que cuida de seu bebê, mas o de alguém com outras versões sociais e capaz de executar diversas tarefas no campo profissional.

Nisso está a sua nota feminista, que já aparece no início numa magnífica paráfrase de “2001, uma odisseia no espaço”. No filme de Kubrick, um macaco descobre as possibilidades da sua inteligência esmagando com um osso a carcaça de um animal; é a “aurora do homem”, como chamou o diretor. No de Greta Gerwig, é uma menina que, também ao som de Richard Strauss, usa a boneca para destruir as versões bem-comportadas nas quais o machismo (embutido nas próprias mulheres) se acostumou a representá-la. 

Com isso está dada a largada para a desmitificação do universo da Barbielânda, um lugar literalmente cor-de-rosa em que todos são afáveis, risonhos, e não se pensa na morte. Ou não se pensava, pois de repente, no meio de uma dança, a referência à Indesejada das Gentes aparece na fala da boneca e soa como um brutal choque de realidade também para as outras Barbies que com ela convivem.

O filme faz uma crítica bem-humorada ao machismo. Os machos são ridicularizados na sua inépcia até para fazer coisas tradicionalmente próprias dele, como distinguir uma onda em que podem surfar. Chamam-se todos “Kens” – um bom recurso do roteiro para sugerir a padronização do comportamento e a falta de individualidade. 

A obsessão do “Ken” da Barbie por cavalos sugere quanto no imaginário dos jovens americanos repercute a figura dos mocinhos do faroeste. Não é à toa que terminam brigando uns com os outros, o que favorece a volta da hegemonia feminina na Barbielândia (não será isso uma antevisão do que poderá ocorrer numa sociedade machista e bélica como a nossa?).

Outro alvo de crítica no filme são as corporações industriais, tipificadas na Mattel, empresa que fabrica a boneca. De olho apenas no lucro, os magnatas se desesperam quando veem a Barbie invadir o mundo real para tentar encontrar o responsável pelas “imperfeições” que de repente apareceram em seu corpo e na sua alma. Como ficariam as vendas com essa Barbie humanizada? 

Curiosamente, a fonte da distopia (para usar uma palavra da moda) está na própria empresa. É uma desenhista que aparece como “uma humana” e não consegue impedir que a sua crise existencial e materna se reflita nos desenhos que produz. Vivendo uma relação tumultuada com a filha, ela parece querer romper com o modelo idealizado segundo o qual a Barbie foi projetada. 

“Barbie” é um filme inteligente e divertido. Fascina pela ousadia da sua proposta e por nos fazer refletir sobre o mecanismo que rege a criação de certos ícones do mercado. Sobretudo, mostra como são falsas e frágeis as fantasias que buscam nos afastar da realidade.

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