quinta-feira, 27 de junho de 2024

Dois flagrantes juninos

 


     O balão se eleva no céu denso de fumaça. Por um momento se confunde com os outros fogos, mas logo segue vitorioso ao empuxo do vento. Seu brilho, contrastando com as sombras em volta, é uma imagem de triunfo e esperança.  

      Para onde ele vai? Ninguém se interessa em saber. A impressão que dá é a de que nunca vai cair; continuará subindo até deixar a Terra e, quem sabe?, adentrar o espaço celeste como uma oferenda de luz.    

     Finalmente chega ao seu limite e começa a descer. Já não é aquele coágulo luminoso; bambeia com a brisa e parece prestes a se consumir.  Com o que lhe resta de fôlego, paira sobre campos, charcos, estradas. Sobrevoa uma refinaria em que há pelo menos três depósitos de combustível. Passa rasante, mas não cai por lá. Vai cair alguns metros depois, numa plantação que começa a pegar fogo.

           Quem o soltou não terá notícias desse incêndio banal, que deu prejuízos a um pobre agricultor mas não matou ninguém. Seria muito diferente se o balão tivesse atingido um dos depósitos. O fato de isso não ter acontecido pode ser uma prova de que São João existe, e vela por nós.

 

                                                      *****

        A turma inventou de criar uma quadrilha no bairro. Uma quadrilha junina, é claro, composta de bons moços e não de malfeitores. Convidaram-me, mas delicadamente recusei. Além de ser tímido, eu era claustrofóbico. Ficava imaginando como ia me sentir quando tivesse de entrar no “túnel”.

      O grupo começou a se reunir duas vezes por semana. Levou tempo até que conseguisse adestrar o corpo nos passos e movimentos da dança. Era preciso também aprender a rir, pois não se concebe um quadrilheiro circunspecto. Isso podia ser tolerável entre os nobres franceses que praticavam a velha “dança de pares”, mas não entre a plebe que a adotou.

       Para tudo sair perfeito, a turma queria a maior fidelidade possível às origens. Chegou a contratar um professor de francês, pois era interessante que o “puxador” (devia ser esse o nome) tivesse sotaque.  “Anarriê”, em vez de “En arrière”?  Jamais! (leia-se “Jamé!”)

        Chegou enfim o grande dia. Os rapazes vestiam calças rústicas e camisas coloridas; as meninas, longas saias que terminavam em bicos ou rendas. Ao lado do pavilhão, crianças brincavam soltando fogos.  

        De repente uma “cobrinha” (um desses artefatos que se propagam rastejando)  invade o palco e se mete embaixo da saia de uma das garotas. Ela pula, corre de um lado para o outro, mas não consegue se livrar do pequeno réptil de fogo que lhe lambe as pernas. Então, numa última e desesperada tentativa, joga fora a saia com forros e tudo.

        A “cobrinha” ficou entalada nas vestes. Quanto à garota, multiplicava as mãos para tentar se cobrir. A rapaziada assistia eufórica à cena, alguns interiormente gritando: “Viva São João!”

sexta-feira, 21 de junho de 2024

O noivado e o poema


 

Eu preferia não receber originais de poesia ou ficção. Quando o rapaz ou a moça nos entregam o texto, como que jogam em nós a responsabilidade pelos seus sonhos, seus destinos, e até pelo significado de suas dores. Pensam que deve haver um nexo entre sofrimento e aptidão artística; que a arte deve necessariamente compensar uma existência aborrecida ou mesmo infeliz.

Me lembro de uma ocasião em que eu estava no meu ambiente e ouvi batidas na porta. Era uma aluna. Trazia um pacote de papel-madeira que envolvia os originais de um livro de poemas. E queria minha opinião. Pediu que eu fosse rápido, pois o volume já tinha data de lançamento: devia coincidir com o dia do seu noivado. Ela esperava fazer uma festa única, apresentando aos amigos, duma talagada, o livro e o futuro marido.

Sem dar tempo de eu dizer nada, foi saindo depois de fixar o prazo que tinha para ler: três dias. Após isso viria buscar os originais com a minha opinião – ou não seria o meu aval? Um tanto contrafeito, eu disse que “está bem” e vi-a partir, rápida como chegou, certamente premida por mil deliberações ligadas ao noivado, ao livro, a um futuro bipartido entre escritora e dona de casa. Vivia o instante saboroso das prévias, pois a felicidade não morre de véspera.

Vi que os poemas eram fracos, a moça não tinha vocação para a poesia.  Nenhum rigor artesanal, nenhuma técnica. O que havia, em linguagem tosca, era dessas confissões que se diz ao padre. E a literatura possui ela mesma o seu ofício de penitência, que é a luta pela forma! Conteúdo e depuração. Em literatura tudo se consuma no ato (de contrição) da escrita. Os verdadeiros escritores sabem disso; escrevendo, pagam suas culpas pelo que dizem e, muito mais, por “como” devem dizer.  

Mas que tem a moça a ver com tais considerações? Ela queria uma aquiescência, um sim literário tão cúmplice quanto o que iria receber do noivo, no altar, dali a alguns dias. E eu iria dizer não. Deveria então ser tático; um desengano naquele momento poderia traumatizá-la, inabilitando-a não só para a literatura (o que seria menos grave), como também para o casamento (isto, sim, de lamentar).

Me incomodava que, no que me dizia respeito, sua festa fosse se frustrar parcialmente. Mas qual o remédio? A moça era noiva mas não era poeta. Queria oficializar tudo num só dia, noivado e livro, mas não demonstrava qualquer jeito para este último. Ocorreu-me perguntar, cá em foro íntimo: e teria vocação para o noivado e o posterior casamento? Talvez ela se perguntasse isto e passasse ao largo da resposta, aspirando tão só ao rótulo, à convenção, ao que todas na vida fazem.

Ah, mas noivado se faz e refaz até não haver mais tempo. Literatura, não. Ela já é um conserto para os desconcertos da vida. O casamento pode ser pífio, equívoco, um triste engano – mas o poema tem que ficar perfeito.

Um nome de mulher