segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Dos humores da crônica

 


Josué Montello dizia que escrever para jornal exige sobretudo disciplina. Não apenas a disciplina de se sentar semanalmente diante do computador e produzir o texto, mas o exercício diário de observar os fatos, as pessoas, e atentar no ritmo tumultuário da vida. Pois jornal é instante, urgência, celebração contraditória do hoje. O mesmo se pode dizer dos blogues e portais coletivos cujos colaboradores (a grande maioria no exercício da crônica) prolongam e às vezes revigoram essa vertente jornalística. 

O cronista precisa estar sintonizado com os eventos para não correr o risco de falar de “outro mundo” – quando não do seu mundo subjetivo, que nem sempre interessa aos outros. É preciso que ele, ao falar de si, fale também do que toca mais de perto quem o leia. 

No universo da palavra escrita, em que nem sempre o que se produz encontra um receptor (às vezes morre num cesto, ou hiberna numa gaveta até ser consumido pelas traças), o jornal é a possibilidade da publicação imediata. Daí o seu fascínio. Isso tenta muita gente e faz nascer uma espécie de vício, uma cachaça. Conheço muitos que sem essa válvula de escape correriam o risco de adoecer mentalmente – em parte porque não conseguem se privar da embriagante sensação de ver seu nome em letra de forma.

O jornal, em princípio, repele a literatura. O texto jornalístico deve ser objetivo e deixar transparecer o mundo – o contrário do que acontece com o texto literário, onde a palavra carrega-se de sentido em si mesma. Mas temos no Brasil uma larga tradição de jornalistas-literatos. Isso teve o seu lado positivo, pois criou nos cultores do gênero o “dever” de escrever bem.

Autores como Machado de Assis, João do Rio, Nelson Rodrigues Rubem Braga e outros concorreram para fixar um padrão de prosa jornalística que muitos vêm tratando de imitar. Ganha o jornal, que com isso ultrapassa o anorético rigor dos lides. Sem o tempero que trazem os cronistas, ele seria seco e obtuso como a instrução sem prazer. Nem sempre a última palavra é a do  editorial, ou a das notícias pescadas pelos repórteres. A função do cronista é captar o suplemento de verdade que se disfarça nos desejos, nos sonhos, nas ocultas intenções cotidianas.

A crônica derivou-se do ensaio, mas especialmente no Brasil adquiriu contornos que a distanciaram do gênero inventado por Montaigne. Tornou-se mais leve, flexível, impressionista, caracterizando-se como um exercício de linguagem que visa mesmo a fazer passar o tempo (daí a sua etimológica vinculação ao deus Cronos). O distanciamento chegou a tal ponto que há quem faça rigorosa distinção entre a crônica e o gênero ensaístico (mais comprometido com o desenvolvimento articulado e pouco digressivo de um assunto). Ela seria um filho rebelde, que obedece ao próprio humor e procura se manter fiel aos seus caprichos.

A famosa caracterização de Agripino Grieco, que chamou os cronistas de “excelentes nadadores de piscinas”, não deixa de traduzir uma visão preconceituosa. Tende a inferiorizar a crônica perante a ficção, cujos autores singrariam com fôlego e destemor águas profundas. Cada gênero tem suas características, ora. Há bons e maus ficcionistas, assim como há os cronistas medianos e os que chegam à excelência do gênero.

           Ao cronista não interessa criar um mundo paralelo, com personagens que reproduzem os dramas humanos. Seu mundo é mesmo este em que nos movemos – escravos de um cotidiano o mais das vezes medíocre –, do qual ele procura extrair o humor, o lirismo, a sátira que permeiam o comércio entre pessoas comuns. Para respirar esse oxigênio e convertê-lo num breve alento para o leitor, ele só precisa de algumas braçadas.

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(Quem aparece na janela olhando os passarinhos é Rubem Braga, um de nossos maiores cronistas. Conhecido como "O Sabiá da Crônica", o "velho" Braga não era muito dado aos contatos sociais; preferia os animais aos homens.) 

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Elementos de carnavalização em "A verdadeira estória de Jesus", de W. J. Solha


Quando cursava o Mestrado na UFRJ, inscrevi-me na disciplina “Carnavalização e Literatura”, ministrada por Affonso Romano de Sant’Anna. Para a avaliação final apresentei o texto abaixo, que aparece aqui resumido e, por economia de espaço, sem as referências bibliográficas.

Certamente em função do tema que desenvolve – uma versão de como se teria urdido o mito de Jesus Cristo –, Waldemar Solha opera nessa obra com alguns dos recursos que inauguraram a vertente dialógica da literatura. O presente trabalho se propõe a apontar alguns desses recursos, ligados ao diálogo socrático e à sátira menipeia, observando-lhes a pertinência linguística, em função do plano temático, e a possível eficácia literária.

O primeiro deles é o “dialogismo”, formulado segundo princípios teóricos de Mikhail Bakhtin. Os quatro evangelistas discutem o seu Cristo num teatro, cuja forma de estruturação é basicamente o diálogo. O engendramento do Libertador vai-se fazendo aos poucos, pela intervenção de cada um. Trata-se afinal de buscar a verdade, e esta (conforme postula Sócrates) não pode nascer de um só homem – está entre os homens.

         Outro recurso é a “presença de heróis ‘ideológicos’”. Os evangelistas se opõem por palavras, ideias, conceitos. A aventura deles, pois, é em larga medida intelectual – mais propriamente, da imaginação, conforme refere Lucas na página 31: “A cópia fotográfica disto que chamamos realidade não conseguiria jamais, eu sei disso, trazer à superfície este nosso Messias. Ele terá de ser o resultado de nossa disposição à mediunidade (...) que foi concedida aos artistas”.

Para destruir a dominação romana, os quatro não vão pegar em armas ou pregar em praça pública. Vão ativar reminiscências, estabelecer analogias no confronto dos diversos textos sagrados. O propósito deles, à maneira do que havia no diálogo socrático, é uma “procura e experimentação” da verdade, que se confundiria com o Verbo, a Sabedoria, o Cristo. Daí esse propósito envolver necessariamente outro recurso, a “síncrise” (oposição, antítese). Os protagonistas divergem sobre aspectos exteriores, como o porte físico e a cor dos olhos, e sobre a própria natureza da mensagem que o Messias pregará.  

Deve-se entender que o questionamento, no romance, antes de dizer respeito ao significado do Cristo, refere-se à existência ou não desse mesmo Cristo. Solha simula o diálogo socrático no processo de engendramento do Salvador, mas advoga a tese de que o Cristo não existiu historicamente. Seria o Messias um dos mitos solares criados, de tempos em tempos, pela imaginação de artistas sensíveis ao drama do povo.

         Importa salientar que a simulação do recurso dialógico, como forma prevalente de estruturação da narrativa, não foi de modo algum gratuita. O romance enfoca um momento de ruptura da totalidade psicoemocional do homem, qual seja, o da decadência clássica e primórdios de uma nova religião. E o cristianismo instaurou a percepção e a expressão dramáticas, opostas à univocidade da epopeia e da tragédia. No drama, cuja essência é a tensão, exerce papel capital o diálogo. Privilegiando-o como forma de atuação dos evangelistas, o texto se harmoniza com o espirito em que se deu o advento cristão.

Vejamos agora recursos ligados à sátira menipeia; criada pelo escritor grego Menipo, ela procede à crítica a atitudes mentais ou de comportamento. Entre as caraterísticas desse gênero, merece destaque o chamado “fantástico experimental”. Bakhtin explica esse traço como “a observação feita de um ponto de vista inusitado (...), de onde a escala dos fenômenos é bruscamente modificada”. Trata-se de uma forma de realçar o grotesco, o disforme, o desproporcional; o artista expressa a realidade por meio de insólitos pontos de vista.

No romance, tal efeito se realiza em larga medida pelo uso de elementos tomados à linguagem cinematográfica. Isso permite multiplicar os ângulos de visão “inusitados” mediante os quais o artista transpõe o real, o que torna possível fundir todas as distâncias e todos os tempos. Como um dos objetivos do narrador é atualizar os instantes, já que a vigência dos mitos é atemporal, o recurso a processos cinematográficos, além do que representam por si, têm um valor quase simbólico.

São abundantes no texto passagens que reproduzem técnicas do cinema. A título de exemplificação, pincemos duas: “Lucas... recuou com tal rapidez, que sua posição anterior ficou ainda um momento recuando no ar....” (p. 28); “Eliseu, sendo visto de cima para baixo por ele (Elias), saiu correndo, aturdido com a ligação daquela travessia com a de Moisés, decrescendo na margem do Jordão, rapidamente se encolhendo na distância, sua voz diminuindo sensivelmente, ele gritando ‘Meu pai: Carros de Israel e seus cavaleiros!’” Note-se como, neste último exemplo, o efeito de plongée instaurado com o olho/câmara de Elias é acentuado pelo uso repetido do gerúndio.

Mas a influência do cinema não se manifesta somente no visualismo de algumas imagens. A própria concepção do livro é cinematográfica, pois ele aparece como uma montagem de diversos tempos e personagens históricos. A partir do diálogo dos evangelistas, espinha dorsal da narrativa, acumulam-se citações, descrições, confissões autobiográficas, mesclando-se o verbal com o icônico, a imaginação com a realidade, Jerusalém com o Brasil.

O resultado não é só um texto verbal, é um filme. E como não, se tudo é cinema? Se o Homem não é outro senão o que “fora localizado a partir de um fotograma qualquer, perdido no meio do rolo do filme inteiro que, segundo os cálculos aproximados de Einstein, tem cerca de 200 bilhões de anos-luz de extensão”? (p. 59)

Outro recurso ligado à sátira menipeia que aparece no romance é a “incorporação do fantástico de aventura”. Tal expediente decorre da própria matéria de que o romancista se apropria, representada pelo cruzamento entre a história e a lenda. Reconstituindo os passos de Ciro, Jacó, Moisés, o narrador como que revive os mitos, apresentando-os nos momentos de prova pelos quais teriam sobrevivido no imaginário popular. Nessas ocasiões o fantástico se confunde com o simbólico, pois aí se representam valores e se realizam desígnios que remontam ao começo dos tempos – à voz dos profetas.

O fantástico aparece também nos desvarios apocalípticos dos evangelistas, Mateus sobretudo, que vivem na expectativa da destruição de Jerusalém. A narrativa é pontuada pela tensão desses momentos, nos quais vida e morte, passado e presente, criação e escatologia se alternam e confundem. Quanto a isso, pois, o texto parece obedecer a um secreto ritmo carnavalizador – o “pathos da decadência e substituição, da morte e renascimento”.

Citemos, por fim, a chamada “fusão de discursos”. Os argumentos de que Solha lança mão para provar a sua “tese” sobre o Cristo têm variada proveniência: livros sagrados, textos de literatura, obras historiográficas. E têm sobretudo um fundamento popular: a crença pagã na “festa do sol renascente”, que acorre por ocasião do solstício de inverno. Nessa data, “o Sol (...) aparece de volta, depois de um longo inverno, para nos salvar do Mal e das Trevas” – imagem do que, para o homem, representa a vinda do Salvador.


terça-feira, 13 de agosto de 2024

Definições heterodoxas

 


            Nem sempre o sentido de determinadas palavras está no que diz o dicionário. Por vezes a experiência que temos com elas nos encoraja a tentar redefini-las, acrescentando-lhes matizes que não se encontram na conceituação tradicional.

             Esse acréscimo nada tem a ver com polissemia; dicionário nenhum iria encampar os sentidos que apontamos abaixo. Relaciona-se, antes, com facetas do comportamento humano associadas a esses vocábulos. Daí ser necessário extrapolar o que sobre eles informa o (inadequadamente cognominado) “pai dos burros”. Se o leitor não concordar com as novas acepções, poderá sugerir outras. Vamos lá:   

CANSAÇO – Estado de fadiga física ou mental que acomete sobretudo quem não faz nada. 

CÉU – Prêmio que os pobres almejam ganhar em outro mundo, e os ricos preferem desfrutar mesmo neste. 

CONFIDENTE – Pessoa que a gente escolhe para contar aos outros os nossos segredos.

CONVICÇÃO – Certeza que temos de algo enquanto não nos convencemos da verdade oposta.

COVARDIA – Manifestação envergonhada do instinto de conservação.  

CULPA – Dívida imaginária a um credor que se agiganta à medida que sentimos aumentar o débito.   

EMPRÉSTIMO – Doação camuflada sob a promessa de retribuição do beneficiário.

ECONOMIA – Prática que os ricos adotam por opção, e os pobres, por necessidade.

ESPÍRITO PÚBLICO – Disposição que se manifesta nos políticos a cada quatro anos e desaparece nos intervalos. 

FIDELIDADE – Compromisso de não trair o outro desde que outro não nos atraia.

FUTURO – O que a gente sempre espera mas nunca chega, pois quando chega já não é mais.

GOSTOSURA – O que os homens dizem de certas mulheres, e as mulheres dizem de certas tortas.

IDEOLOGIA – Justificativa para escolher os candidatos em função dos grupos a que se filiam, e não das suas qualidades pessoais.

MACHISMO – Desvario da hombridade, que no fundo mascara o medo de não ser considerado homem.

PERFECCIONISMO – Impulso que nos tira o prazer de fazer bem feito pelo receio de não fazer melhor.

POLÍTICA – A arte de prometer mundos e ficar com os fundos.

PROMESSA – Garantia que damos, em determinado momento, do que não vamos cumprir depois.  

SOLIDÃO – O preço da liberdade, que muito poucos se dispõem a pagar.

TACOCARDIA – Aceleração dos batimentos cardíacos que vez por outra acomete os jogadores de sinuca. 

TIMIDEZ – Receio que o indivíduo tem de se mostrar como é por medo de que o tomem pelo que não é.  

UTI – Lugar onde geralmente se morre depois de gastar os tubos.

VERGONHA – Sentimento que falta a quem precisa e às vezes sobra em quem não merece.

Um nome de mulher