Josué Montello dizia que escrever para jornal exige
sobretudo disciplina. Não apenas a disciplina de se sentar semanalmente diante
do computador e produzir o texto, mas o exercício diário de observar os fatos,
as pessoas, e atentar no ritmo tumultuário da vida. Pois jornal é instante,
urgência, celebração contraditória do hoje. O mesmo se pode dizer dos blogues e
portais coletivos cujos colaboradores (a grande maioria no exercício da
crônica) prolongam e às vezes revigoram essa vertente jornalística.
O cronista precisa estar sintonizado com os eventos
para não correr o risco de falar de “outro mundo” – quando não do seu mundo
subjetivo, que nem sempre interessa aos outros. É preciso que ele, ao falar de
si, fale também do que toca mais de perto quem o leia.
No universo da palavra escrita, em que nem sempre o
que se produz encontra um receptor (às vezes morre num cesto, ou hiberna numa
gaveta até ser consumido pelas traças), o jornal é a possibilidade da
publicação imediata. Daí o seu fascínio. Isso tenta muita gente e faz nascer
uma espécie de vício, uma cachaça. Conheço muitos que sem essa válvula de
escape correriam o risco de adoecer mentalmente – em parte porque não conseguem
se privar da embriagante sensação de ver seu nome em letra de forma.
O jornal, em princípio, repele a literatura. O texto
jornalístico deve ser objetivo e deixar transparecer o mundo – o contrário do
que acontece com o texto literário, onde a palavra carrega-se de sentido em si
mesma. Mas temos no Brasil uma larga tradição de jornalistas-literatos. Isso
teve o seu lado positivo, pois criou nos cultores do gênero o “dever” de
escrever bem.
Autores como Machado de Assis, João do Rio, Nelson
Rodrigues Rubem Braga e outros concorreram para fixar um padrão de prosa
jornalística que muitos vêm tratando de imitar. Ganha o jornal, que com isso
ultrapassa o anorético rigor dos lides. Sem o tempero que trazem os cronistas, ele
seria seco e obtuso como a instrução sem prazer. Nem sempre a última palavra é
a do editorial, ou a das notícias
pescadas pelos repórteres. A função do cronista é captar o suplemento de
verdade que se disfarça nos desejos, nos sonhos, nas ocultas intenções
cotidianas.
A crônica derivou-se do ensaio, mas especialmente no
Brasil adquiriu contornos que a distanciaram do gênero inventado por Montaigne.
Tornou-se mais leve, flexível, impressionista, caracterizando-se como um
exercício de linguagem que visa mesmo a fazer passar o tempo (daí a sua
etimológica vinculação ao deus Cronos). O distanciamento chegou a tal ponto que
há quem faça rigorosa distinção entre a crônica e o gênero ensaístico (mais
comprometido com o desenvolvimento articulado e pouco digressivo de um assunto).
Ela seria um filho rebelde, que obedece ao próprio humor e procura se manter
fiel aos seus caprichos.
A famosa caracterização de Agripino Grieco, que chamou
os cronistas de “excelentes nadadores de piscinas”, não deixa de traduzir uma
visão preconceituosa. Tende a inferiorizar a crônica perante a ficção, cujos autores
singrariam com fôlego e destemor águas profundas. Cada gênero tem suas
características, ora. Há bons e maus ficcionistas, assim como há os cronistas
medianos e os que chegam à excelência do gênero.
Ao cronista não interessa criar um mundo paralelo, com personagens que reproduzem os dramas humanos. Seu mundo é mesmo este em que nos movemos – escravos de um cotidiano o mais das vezes medíocre –, do qual ele procura extrair o humor, o lirismo, a sátira que permeiam o comércio entre pessoas comuns. Para respirar esse oxigênio e convertê-lo num breve alento para o leitor, ele só precisa de algumas braçadas.
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(Quem aparece na janela olhando os passarinhos é Rubem Braga, um de nossos maiores cronistas. Conhecido como "O Sabiá da Crônica", o "velho" Braga não era muito dado aos contatos sociais; preferia os animais aos homens.)