quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Para além do esquecimento


             “Ainda estou aqui” tem lotado as salas de cinema brasileiras. Vi-o há pouco e entendo a razão do sucesso. O filme é um registro impactante do pesadelo que o País viveu nos chamados “anos de chumbo”.   

A partir do sequestro e morte do ex-deputado Rubens Paiva, o roteiro enfoca a esfacelamento de uma família de classe média, igual a tantas outras, que de repente se vê aterrorizada pela prepotência e o arbítrio. O alegre convívio familiar, marcado por jogos, brincadeiras, idas à praia, é rompido pela presença enigmática de “estranhos” que invadem a casa.

Além de levar o chefe, eles fazem ao longo de semanas um cerco que inflige apreensão sobretudo a Eunice, esposa do político, que tenta esconder dos filhos o perigo que os está rondando. A personagem é interpretada por Fernanda Torres, cotada para o Oscar. Ela bem que merece ganhar a estatueta; com a sua interpretação tensa, contida, deixa transparecer sobretudo pelo olhar o desespero que vai tomando conta de todos. 

A cena em que toma banho ao voltar para casa, após a reclusão numa cela policial, merece figurar numa antologia do cinema. A ênfase com que esfrega o corpo gretado e macerado traduz uma repugnância que não é apenas da sujeira física. Ela parece querer extirpar da alma o que ali involuntariamente testemunhou da degradação humana.

A sequência final, em que Eunice é interpretada por Fernanda Montenegro, constitui um dos pontos altos do filme. Vale pelo meticuloso desempenho da atriz e pelo simbolismo que contém. Com Alzheimer, e já esquecida de quase tudo, a personagem manifesta uma rara porém significativa reação ao ver, numa reportagem televisiva, a foto do marido entre um grupo de “desaparecidos”. Só mesmo a Grande Dama para traduzir na medida, com verossimilhança, o traço de emoção que alguém acometido pelo Alzheimer pode experimentar.   

            A doença, então, aparece no filme como uma metáfora; evoca um esquecimento maior e mais grave, referente ao que o País viveu naqueles tempos sombrios. E nos sugere, ante o estupor da personagem, que a amnésia histórica pode levar à reprodução de tudo aquilo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O silêncio do inocente


Lembro-me de uma cena que presenciei, há alguns anos, num restaurante da praia que eu costumava frequentar. Nele quase sempre havia pouca gente, de modo que era possível se sentar, pedir uma cerveja e passar minutos ou horas matutando. Enquanto as garrafas vazias se multiplicavam, abrandando o peso das noites de sábado, a gente pensava na vida – às vezes, também, na morte – e curtia uma rala, iluminada, melancolia.

Todo rapaz, entre os quinze e os vinte anos, tem a sua pose de romântico da Segunda Geração. Eu estava nessa, curtindo o tédio e bebendo por uma espécie de compulsão litúrgica – que fazer no sábado à noite, a não ser isso? Foi quando vi entrar o casal. Ou não apenas um casal, pois havia com eles – ou entre eles – um menino.

Difícil era saber por que vieram parar ali. O homem tinha um rosto dostoievskiano – seco e duro. A mulher estava pálida e, pelo vermelho dos olhos, via-se que tinha chorado. Em sua inocência distraída, o menino só se parecia mesmo com um menino. De olho nas garrafas das mesas (certamente pensando nas tampinhas), vez por outra mirava um tanto perplexo os dois.

Sentam-se, encomendam qualquer coisa e, antes mesmo que o garçom traga o pedido, começam o falatório – com pressa, e no seco. O homem fala alto mesmo para um bar, não se importa com as pessoas em volta. A mulher argumenta, contesta, defende-se. Como sou vizinho, chegam à minha mesa fagulhas da discussão. E o curioso é que vou começando a ficar sóbrio. A intrusão súbita da vida real desfaz o meu incipiente torpor alcoólico.

Em dado momento, o sujeito aponta para o menino e diz: “Se não fosse por ele...”. Não completa a frase, mas é fácil de entender. A mulher rebate com raiva, exalta-se e provoca: “Se ele é o problema...” – não ouço o término da frase. Um casal em crise e entre eles um menino. O homem agora acusa os pais dela de não sei o quê, a mulher se defende dizendo que era ele o ingrato: “Você sempre teve má vontade. E não pode dizer tantinho assim de meus pais, que têm nos ajudado inclusive financeiramente.”

Ao ouvir isso, o raskolnikov dá um soco na mesa e faz menção de se levantar. Mas não se levanta, engole a possível ofensa com um copo de água mineral; o garçom tinha vindo e deixado uma coca e uma garrafinha d’água. A coca era para o menino. A mulher não quis nada. Olha em torno e distraidamente me vê. Disfarço, constrangido, e finjo que não percebo sua nova torrente de lágrimas. O menino tem o ar impaciente e assustado.  

Depois de algum tempo os dois vão embora, levando a reboque o seu pequeno estorvo. Fiquei me perguntando: por que na frente do menino? Por enquanto, ele era um involuntário problema para os dois. No futuro, arruinado por cenas como essa, seria um desastre incurável para si mesmo. Aquela cena jamais me saiu da cabeça. Pensei que os adultos até poderiam brigar, trocar farpas, externar um recíproco ressentimento – mas não tinham o direito de, ao fazer isso, destruir a inocência das crianças.

Um nome de mulher