quinta-feira, 10 de abril de 2025

História indefinida

             

           Referem as crônicas que certo dia Alguém se apaixonou por Ninguém.  Quando ou como se conheceram, nunca se soube. Mas Alguém comentava com amigos que Ninguém era muito diferente da Outra. Sim, porque a Outra, com quem tivera uma vaga relação, de Ninguém nem perto chegava. Jamais conhecera um ser tão misterioso, difuso, inabordável e, no entanto, tão certo e presente.

O problema é que, depois de tê-la encontrado um dia (se não foi sonho...), Alguém perdeu Ninguém de vista. E de audição, olfato, gosto. Ela (pois Ninguém é mulher) em lugar nenhum estava. Onde morava Ninguém? Teve então outro sonho, em que Algo lhe soprou: “Ninguém só pode morar Alhures...”. E Alguém tratou logo de ir para lá.

Varou estradas, escalou montanhas, percorreu inúmeras trilhas, e nada de chegar Alhures. Que ficava sempre além. Desencantado, perguntava a Todos se a conheciam, se por acaso a tinham visto. Respondiam sempre que não. Como era ela? Com quem se parecia? Ninguém só se parecia com ela mesma – e às vezes inexplicavelmente com Todas, o que o confundia ainda mais.  

Tentando vislumbrar o rosto da amada, Alguém se lembrou do sonho em que a vira – ou imaginou tê-la visto. Já não sabia se aquilo fora mesmo um sonho, se no sonho havia um rosto de mulher e se a mulher com quem sonhara era a mesma que passou a procurar. Tudo lhe parecia muito vago.  

Um dia cansou, desistiu. Talvez procurasse a pessoa errada, confundindo Ninguém com Todas, ou Todas com Nenhuma, que por sinal eram muito semelhantes. Certamente Ninguém vivia não aqui nem Alhures, mas ao léu. 

Pensava em desistir da procura, quando então apareceu o Outro – um velho amigo –, dizendo-lhe que deveria continuar. Perguntou-lhe o que ganharia se desistisse depois de tanto empenho. Nada. E acabaria perdendo Tudo. Ou Todas. Alguém ponderou que não era egoísta a ponto de querer Todas, ou Qualquer Uma. Ao que o Outro confirmou, um tanto filosoficamente, que querer Todas era uma forma de ter Nenhuma.  

Propôs-lhe então que passasse um tempo sozinho, para esquecer a fugidia amada, e depois procurasse Outra. “Outra?” Sim, outra que com Ninguém se parecesse. “Outra no lugar de Ninguém? Nunca.”

          E assim, entre tantos indefinidos, Alguém deu por finda a sua busca. Não estava triste. Consolava-o saber que Ninguém era mesmo de ninguém.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Do cochilo

Admiro quem tem o hábito de tirar um cochilo durante o dia. Comigo isso é difícil, e presumo que o motivo seja a falta de hábito. Segundo os médicos, tirar a soneca diária faz bem e – o mais curioso – não atrapalha o sono noturno. Entre as suas vantagens, pelo que li numa rápida consulta à internet, estão a melhora da atividade intelectual, a redução do estresse, a maior eficiência dos batimentos cardíacos e o aumento do bom humor.

Esse último efeito é o que mais aprecio, tendo em vista o mau humor que atualmente impera, sobretudo, entre os habitantes das grandes cidades. A violência, as dificuldades econômicas e o atropelo urbano vêm espicaçando os nervos das pessoas, que tendem a se tornar intolerantes e agressivas. Não lhes faria mal parar por alguns instantes e se deixar embalar por Morfeu, cujas virtudes hipnóticas são ressaltadas na mitologia.

A hora ideal para isso é depois do almoço, pois nesse momento o processo da digestão ajuda. Sabe-se que, após as refeições, aumenta o nível de potássio no organismo. Esse mineral, segundo li, “pode influenciar o sono de forma indireta ao contribuir para o relaxamento muscular e a regulação da pressão arterial”. Segundo ainda a matéria, isso “é parte de um mecanismo homeostático que busca manter o equilíbrio eletrolítico do organismo”. Coisa séria e necessária, como veem. Do aumento desse mineral não se escapa, bem como do efeito sedativo que ele provoca.  

O governo deveria então estimular o hábito da sesta, instituindo algo como o Auxílio-Cochilo ou oferecendo dedução no Imposto de Renda a quem provasse que tira uma soneca de pelo menos meia hora depois de almoçar. Não era preciso que o País parasse, como ocorre em certas partes da Europa, mas a medida concorreria para uma melhor convivência entre seus habitantes – vários deles com o inevitável déficit de sono decorrente das inúmeros exigências da vida moderna.

Mas é preciso ponderar que, para fazer bem, o cochilo tem que ter hora e, sobretudo, ser voluntário. Cochilar na hora errada, e quando não se quer, pode ser prejudicial à pessoa. O povo, que sabe das coisas, traduz essa verdade no conhecido ditado de que “cochilou, cachimbo cai”. O sentido é um tanto metafórico, eu sei, mas não deixa de se aplicar aos que literalmente adormecem e se subtraem aos deveres impostos pela realidade.   

Nas estradas, por exemplo, o cochilo pode ter consequências letais. São muitos os acidentes provocados por quem dirige tresnoitado ou depois de uma gorda refeição.  Em nível de menor gravidade, não são poucos os indivíduos que dormitam no cinema e perdem as melhores partes do filme. O fato de suas mulheres beliscá-los quando começam a roncar não resolve em definitivo o problema; algum tempo depois, o potássio os leva a embarcar no sono de novo.

          O cochilo pode ser também um sinal de enfado diante de algo que aborrece ou amofina. Na impossibilidade de rechaçar de maneira explícita a experiência maçante, a pessoa fecha os olhos e, digamos, escapa para dentro de si. Espero que não seja essa a reação do leitor diante deste texto, mas, antes que boceje, acho que chegou a hora de colocar um ponto final.

História indefinida