Alguém já disse que a cama é um móvel metafísico, pois nela o indivíduo nasce, ama e morre. Vejo-a mais como um móvel físico, em que a gente dorme para aliviar os incômodos do corpo.
A cama
é o lugar do repouso, da meditação, e também da preguiça. A preguiça, como se
sabe, é um dos pecados capitais. Deve ser por isso que, nos claustros e conventos,
tendia-se a evitar as camas confortáveis. Os religiosos dormiam num estrado
duro para que o corpo não se acostumasse ao conforto e viesse a amolecer. Imagino
que, em sonho, supunham estar sobre um colchão fofo, desses a que o corpo lascivamente
se amolda.
O homem
primitivo dormia no chão, sobre pedra, areia, grama. Uma das vantagens disso é
que não sofria da coluna. Certamente alguém, sentindo a maciez da grama,
resolveu cortá-la em tufos e os pôr num saco ou num envoltório semelhante. Assim
nasceu o colchão, ou um protótipo primitivo dele. Embora espetasse um pouco, era
um avanço em relação à superfície pedregosa. A partir daí, nosso antepassado
veio a dormir não apensas por necessidade como também por prazer.
Com o hábito
de ficar na cama, ele começou a dedicar boa parte do tempo à reflexão e ao devaneio,
o que levou ao desenvolvimento da filosofia e da arte (da filosofia até Aristóteles,
para quem a caminhada estimulava o pensamento). Passou também a pensar mais nas
mulheres – a delicadeza dos traços, a melodia da voz, a graça do andar. A
partir dessa percepção, a mulher foi se transformando de simples objeto sexual em
musa erótica. Mas levou tempo até que deixasse de ser puxada pelos cabelos e
levada para o fundo da caverna para fazer amor. Essa prática só teria mesmo fim
com o aparecimento dos primeiros cabeleireiros.
A cama
predispõe à inação e a tudo que ela acarreta. Deitado, o indivíduo consome
menos calorias, tende a engordar e ser vítima das chamadas doenças da
civilização. Mas a verdadeira doença não é do corpo: é do espírito, que tende a
erodir à medida que fraqueja o impulso de se levantar. Primeiro acabamos desistindo
do esforço, que se constitui numa verdadeira batalha; depois, desistimos de nós
mesmos. Na cama o mundo se estreita entre lençóis e travesseiros – e essa
redução, tão confortável, é também o mais insidioso dos perigos.
Esse
perigo é menor para os velhos, pois o pior da velhice é ver minguar, não o
desejo, mas a vontade de dormir. O jovem tem no sono, em que a identidade se
dilui, a graça de suspender por algumas horas o peso da existência. Já o velho,
condenado à vigília, percebe que a noite não é penumbra, mas uma claridade na
qual cada lembrança se ilumina com uma nitidez tão irrefutável quanto dolorosa.
Sem o sono a noite se transforma numa vigília ininterrupta, onde a memória
desfila seus fantasmas com uma nitidez punitiva.
O velho não sofre por falta de sonhos,
mas pelo excesso de lembranças – todas nítidas, e algumas implacáveis. A cama,
então, deixa de ser espaço de repouso para se transformar numa arena em que
manter os olhos abertos sinaliza a derrota. Nessa espécie de naufrágio às
avessas, não adianta se agarrar ao travesseiro. E a idade já não concede a
paciência de contar carneirinhos.
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