quinta-feira, 27 de março de 2025

Algoz e vítima

O bullying sempre existiu no ambiente escolar. É uma prática que reflete a natural tendência do ser humano a julgar, ou mesmo rejeitar, os que lhe parecem inferiores do ponto de vista físico ou intelectual. Entre os adolescentes, que passam por transformações que lhes fragilizam a personalidade, o bullying pode ter efeitos desastrosos. Um desses efeitos – o assassínio de uma garota por um colega de classe – é o tema da série “Adolescência”, que atualmente lidera a audiência na Netflix. 

Muito já se escreveu a seu respeito, de modo que fica difícil dizer algo novo. Falou-se, por exemplo, sobre a filmagem de cada episódio num único plano-sequência, o que concorre para fazer o espectador “participar” da história. Ou sobre o sensível trabalho dos atores, exigidos ao máximo devido à maneira como a série é filmada.

O que mais me chamou a atenção foi a forma como os roteiristas expressam as razões pelas quais o garoto Jamie comete o crime. Sabe-se que elas dizem respeito tanto ao ambiente escolar quanto à negligência da família – mas isso só fica bem claro no fim. 

O roteiro não enfatiza ao longo da trama nenhuma das duas. Dá indicações, mostrando por exemplo a indisciplina de determinados alunos em classe diante de professores que não são levados a sério, ou o temperamento violento do pai do menino. Cabe ao espectador ir colhendo as evidências para atribuir o devido peso a cada um desses motivos. 

A série é dolorosa, mesmo cruel, por mostrar que o ato de tirar a vida da garota foi a resposta a um profundo sofrimento interior. Jamie investiu contra alguém que lhe ressaltara a condição de “incel” (involuntariamente celibatário), confinando-o a uma desesperadora solidão. Isso obviamente não justifica o crime, mas dificulta a atribuição de responsabilidade e concorre para que se veja o menino como algoz e também vítima.

O reconhecimento dessa dualidade se espelha nos olhos horrorizados da psicóloga que o interroga no lancinante terceiro capítulo – o melhor da série. Ela convive com o garoto durante quatro sessões marcadas por alternâncias de humor e uma violência ora contida, ora expressa por acusações de ambas as partes. Sua impotência para fazer um julgamento adequado, mesmo percebendo-lhe a culpa, acaba desmoronando-a emocionalmente.            


sexta-feira, 21 de março de 2025

Para melhor conhecer a nossa língua

 

“Em bom português…”, coletânea da qual participo, é um conjunto de reflexões sobre a nossa língua organizado pelo professor e gramático Fernando Pestana. 

Publicada pela Kírion, a obra inclui artigos e crônicas selecionados do blog “Língua e Tradição” ao longo dos últimos quatro anos. Dela participa um grupo de estudiosos que refletem sobre questões que se põem a quem ensina ou simplesmente usa o português — entre elas, o papel da norma culta e a possibilidade da sua flexibilização nos registros informais;  o peso da tradição nas escolhas linguísticas da modernidade; o efeito da educação na formação dos usuários; entre muitas outras.

A par desse lado mais sisudo, há textos que “brincam” com as palavras mediante jogos fônicos e semânticos reveladores do potencial lúdico da linguagem. São uma forma atraente de abordar fenômenos como a polissemia, homofonia e a paródia, que procedem à desautomatização dos sentidos e por vezes têm efeito de humor.

O rigor na seleção dos textos, a amplitude dos temas  e o tratamento objetivo que a eles é dado são a garantia de uma leitura enriquecedora e prazerosa. Indico vivamente a obra.

sexta-feira, 14 de março de 2025

Adeus a Affonso

 


Affonso Romano de Sant’Anna aliava o conhecimento da literatura ao talento para a criação literária (foi ensaísta, cronista, poeta).

Como estudioso, pesquisou as matrizes de dois procedimentos que se refletiram em muito da nossa produção – a paráfrase e a paródia. Esta última categoria, trabalhada em alguns dos seus textos e brilhantemente explorada nas aulas, levou-nos a compreender melhor a obra de um Oswald de Andrade, um Drummond ou um Mário Quintana (para citar alguns exemplos).

Politicamente, preferia questionar “que país este” a propor estratégias de engajamento social, fazendo desse questionamento um estímulo para que se pensasse além do simplismo das ideologias. 

Os cursos que fiz com ele na Pós-Graduação da UFRJ ajudaram-me a entender a literatura como um continuum no qual as rupturas são muitas vezes retomadas de procedimentos anteriores. Num deles, sobre literatura e carnavalização, escolhi apresentar na avaliação final monografia sobre o romance “A verdadeira estória de Jesus”, de Waldemar Solha, inserido no corpus a ser analisado.

Não deixa de ser curioso que ele tenha morrido durante o Carnaval, tema que abordava em suas aulas sobre a “sátira menipeia” – protótipo da “inversão” presente nos festejos dessa festa pagã e profana que realça a feição contraditória do nosso espírito. 

Evoé, Affonso, misto de gentleman e disfarçado folião! Se outro mundo existe, foste recebido não por um coro angelical, mas por uma trupe de mascarados que escondem sob o disfarce o que há de intensamente humano em nós. 

domingo, 9 de fevereiro de 2025

História arcaica

           Essa história aconteceu no tempo do ronca, quando o recato das moçoilas era-lhes o maior trunfo para os casórios. Quanto mais pudibundas, mais candidatas à celebração nupcial. Daí que se esmeravam em ostentar um ilibado comportamento em sociedade; quando iam às tertúlias, era na companhia das genitoras ou de alguém a quem incumbia vigiá-las.      

Conta-se que um mancebo sem eira nem beira intentava namorar uma dessas donzelas de truz. Para isso usava toda a sua léria, mas o pai da moça se opunha por achar que ele era um mandrião. Não se ocupava em nada que lhe trouxesse algum tipo de estipêndio.  O moço pretendia convolar de estado civil – mas como, se mais parecia um mequetrefe?

O pai então lançou-lhe um repto: ele casaria com a sua filha se jungisse a tal desiderato a demonstração de que não era um soez.

– E o que devo fazer? – quis saber o rapaz. 

– Deves dar-me a prova de que tens futuro. 

Em meio a tão escorchante desafio, o moço foi aos poucos sentindo gorarem-se-lhe as pretensões. Não era nenhum abilolado e percebeu que o queriam apartar da contenda.  Caminhou a esmo na noite até que, esfalfado, resolveu tomar um pifão. Quando a ebriedade lhe turvou o bestunto, dirigiu-se à casa da moça.   

         Postado em frente à alcova onde ela dormia, encetou uma elocução:

– Não tenho prebenda, mas não sou nenhum sorrelfa. Juntos viveríamos com parcimônia, mas não à míngua. Juro-to.

A moça, já adormecida, despertou num sobressalto. Colocou furibunda o corselete, que preferia ao califom, e foi até a janela:

          – Arreda-te, doidivanas. Não vês que nada ganhas com tais ululações? Além disso, tiraste-me dos braços de Morfeu.

          – Morfeu?! Então tens outro... Por que não me falaste? – gorgolejou o rapaz, já pensando em cascar a marreta. Mas logo tirou da cabeça essa ideia, pois no fundo era um poltrão.   

– Se não sabes quem é Morfeu, com isso apenas provas a tua estultice. E dás razão a meu pai... – continuou a moça. Dito isso, fechou com estrépito a janela.

         O rapaz foi embora achando-se um alarve. Ainda pensou em ir até uma botica comprar um sanativo que lhe diminuísse a coita. Ao mesmo tempo, contudo, sentia-se ditoso por haver descoberto a traição. Melhor saber-se guampudo agora do que depois.

 


sábado, 1 de fevereiro de 2025

Pouco substancioso


 “A substância” pretende fazer uma crítica à obsessão que muitas mulheres têm com a beleza e a preservação da juventude. 

Conta a história de Elisabeth Sparkle, uma ex-atriz que vira apresentadora de ginástica e, ao perceber o seu declínio físico, aceita se submeter a uma experiência radical: administrar uma droga que a transformaria numa versão bem mais nova de si mesma. 

O experimento funciona, mas de uma forma surpreendente. Em vez de melhorar o seu aspecto, promove na mulher uma espécie de heterofetação; faz sair do seu corpo uma “outra”, com a qual ela passa a alternar a própria existência. 

Em vez de se deter no autoquestionamento sobre a velhice, discutindo os motivos da não aceitação e as implicações existenciais dessa recusa, o filme passa a expor o conflito que se instala entre as duas. 

Uma quer se sobrepor à outra, numa disputa tipo Dr. Jekyll e Mr. Hyde, e nesse confronto a velha atriz começa a se deformar fisicamente. Adquire aos poucos um aspecto monstruoso, que lhe impede os mínimos movimentos e a transforma num estorvo para si mesma. 

Parece estar nessa hipérbole a “mensagem” a ser transmitida pelo roteiro, já que são cada vez mais frequentes na mídia os “monstrinhos” que têm os rostos desfigurados por procedimentos como harmonização facial e outros do gênero. 

O horror físico aparece como o preço pago pela insatisfação que a personagem tinha consigo. A ênfase nessa transformação, contudo, ao mesmo tempo que constitui a nota original do filme, tira-lhe um pouco da verossimilhança. 

Embora envolva um tema sério como a passagem do tempo e os seus efeitos, A substância” se oferece mais à vista do que à reflexão. Impacta mais pelo que mostra do que pelo que suscita ante o melancólico reconhecimento, por parte de Elisabeth, de que está ficando velha. 

Merece destaque o trabalho das atrizes que encarnam os dois momentos da personagem — sobretudo o de Demi Moore, como Elisabeth. À medida que vai sendo preterida (e derrotada) por Sue (brilhantemente interpretada por Margaret Qualley), ela deixa transparecer um rancor e um desespero cuja intensidade se justifica pelo reconhecimento de que têm como alvo ela mesma. Afinal, como o roteiro faz questão de frisar, uma é a outra. 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Sombras e cores do passado

         

          Em “Esboço em pedra e sonho”, Marilia Arnaud constrói uma trama envolvente, com personagens ricos de substância humana e um domínio do tempo narrativo que leva o leitor a se manter na expectativa até o desfecho. Narrado em primeira pessoa, o romance conta o retorno da personagem Ramona a Santo Antônio das Pedras, cidade onde viveu parte da infância e da adolescência, a fim de tratar da escritura de uma casa que lhe ficou como herança. Nessa casa morou com as tias (Anunciada e Concebida) e o avô Graciliano, que forte influência exerceu na sua formação.   

O Avô (sempre mencionado com letra maiúscula) ocupou o lugar do pai que ela não teve, pois abandonou cedo a família, e lhe deu o sobrenome que faltava na certidão de nascimento, preenchendo um vazio que desde muito cedo a angustiava (“Nunca pensei que a falta de um nome de família pudesse ser tão grave”). Graciliano é o destinatário de Ramona, que a ele se dirige ao longo da narrativa a fim de esclarecer pontos obscuros e dolorosos de uma vivência marcada por relações tensas, e por vezes enigmáticas, com parentes e amigos. “Penso no tempo, e no quanto ele se tece do mesmo mistério da vida, os anos a escavar rugas sinais, cicatrizes, cansaços, e o silêncio no fundo de tudo” – observa a personagem. É para destravar esse silêncio que ela conta a sua história.

Ramona estrutura o seu discurso com o esmero que aplica às telas produzidas no trabalho de artista plástica. O gosto pela pintura lhe veio, em grande parte, da observação das telas do pintor Tonho Mefisto – personagem em conflito consigo mesmo e descrente do próprio talento (que ele na verdade tinha). Marilia costuma dar indicações sobre a configuração psicológica de seus personagens por meio dos nomes que escolhe para eles, e isso fica bem claro na designação que aplica a Tonho.

“Mefisto” é uma redução de Mefistófeles, o demoníaco personagem com quem Fausto faz um pacto para conseguir o conhecimento e alcançar a glória. Ao optar pela pintura, em que se revelaria melhor conhecedora do que praticante, Ramona de certo modo se deixa seduzir por ele. E confirma tal sedução no testemunho dado anos depois de ter os primeiros contatos com o pintor: “Agora exalto o talento puríssimo de Tonho Mefisto, seu amor à Arte, a excentricidade, o niilismo, e revelo ainda o fascínio e o estranhamento que suas pinturas provocavam em mim.”

           Na volta ao lugar onde foi criada, a personagem não deixa de emitir juízos severos sobre figuras com quem conviveu; seu relato, afinal, é uma espécie de acerto de contas. Critica, por exemplo, a hipocrisia religiosa, personificada na figura da tia Concebida (veja-se a ironia presente nesse nome), que fora flagrada por ela num ato sexual com o padre Lauro. E investe contra a ingênua idolatria do povo à figura de Frei Damião, que na opinião do Avô “é um homem retrógrado, de ideias medievais, missionário de um evangelho morto”. A neta o acompanha nesse juízo negativo, enfatizando num tom caricato os gestos mecânicos do religioso e a sua incapacidade de se comunicar com as pessoas: “De quarto em quarto, sob o olhar penitente da tia, ele ergue uma das mãos, traças dezenas de cruzes no ar, bodeja uma prece secreta.”

Ao “evangelho morto” do religioso, o Avô opõe a crença na revolução socialista, alimentada em reuniões secretas que acabam lhe custando a prisão. O nome dele, por sinal, é o mesmo do grande escritor alagoano que, por sua adesão ao Partido Comunista, foi encarcerado pela polícia de Getúlio Vargas durante o Estado Novo; há nisso mais do que coincidência. A detenção do Avô associa-se à decepção da protagonista com uma velha amiga e marca, por assim dizer, o clímax do romance.

Na volta do recolhimento compulsório, a debilitada figura do velho repercute dolorosamente em Ramona; ele não é mais o que era: “À primeira vista, tive a impressão de que encolheras – olhos soterrados nas covas do rosto, barba de meses por fazer, a boca afundada entre duas rugas que desciam em direção ao queixo, cabelos prateados na cabeça. Parecias pedir desculpas por estar vivo.” A narradora não deixa de vincular o desmonte dessa figura rica em bondade e virtudes morais, que tanta importância teve em sua vida, ao triste momento político pelo qual o país passava.

Em texto sobre “O pássaro secreto”, romance anterior de Marilia, procurei destacar o expressionismo da linguagem como uma marca do seu estilo. Esse traço se verifica até com mais ênfase neste “Esboço...”, levando a uma intensificada representação de atributos, ações e estados psicológicos. Assim, um garoto que em determinado momento debocha de Ramona é pintado como tendo “pestanas de vassourinha”; o bullying que a personagem sofre por parte das colegas da escola devido ao abandono paterno leva-a a sentir “os olhos das meninas a (lhe) tirar pedaços”; o pânico na primeira ida ao dentista faz com que sinta “um pedido de clemência a se esganiçar dentro de (si)” – entre outras construções em que a narradora (e pintora) “carrega nas tintas” para caracterizar pessoas e externar emoções. 

“Esboço em pedra e sonho” cumpre o que o seu antitético título parece preconizar. É um misto da dureza da vida, com seus lances de orfandade, traição e desencanto, e da libertadora fantasia propiciada pela vivência da arte. Grosso modo, pode-se dizer que apenas num ponto o título desmente a obra: na denominação de “esboço” a algo tão consumado quanto o talento da autora.

domingo, 12 de janeiro de 2025

Mirtes, a traça

            

Fazia tempo que eu vinha notando, mas o prudente era fingir ignorância. Durante a época de aulas, tudo bem, foi possível manter­-me indiferente. Mas não agora, que longos ócios me obrigam a horas no gabinete. Agora tenho de enfrentar Mirtes e a sua ronha, sua reima de tisanuro roaz.

De noite sinto que me espreita por detrás de uma lombada. Às vezes, sutil, entre linhas ou nalgum subtítulo. Fora isso polvilha infólios e avaria vade-mécuns, Quando não, renitente, rói erratas. E não gosta do passado, Mirtes. Também não quer o futuro. Com a mesma fome devora alfarrábios e ceifa a science fiction. Despreza tanto o nouveau roman, que nenhum bem lhe fez à garganta, quanto as irrupções de neorrealismo latino-americano, que devora a partir das epígrafes. Com uma espécie de deleite reacionário.

Na estante ela prefere o primeiro andar – a família se distribui pelo resto; pois Mirtes é a família, todos com a mesma fome no focinho atávico. Mirtes se posta entre os livros de iniciação. Por algum motivo que não alcanço, detesta propedêutica; já fez em pedacinhos uma Introdução à Filosofia escrita por um grupo de estruturalistas.

Também dilacerou, embora com menor sanha, um guia para o estudo e a compreensão da Semiótica. Não sei o que espere. Mirtes quer me privar de alimento e sentido, eis a verdade. Numa etapa em que não posso voltar atrás, quer me deixar num ermo sem rumo – a traça!

Conforme já disse, ela não é única – é toda uma família. E o traço comum à grei é um dentinho ávido como uma broca, a perfurar como uma ideia fixa. A legião microscópica se dissemina por igual, no intuito bíblico de fazer o homem – seu tesouro de papel – voltar ao pó.

Embora igualitária no seu afã destrutivo, Mirtes demonstra às vezes preferências incompreensíveis. Como entender, por exemplo, que ela tenha destruído o “Idade, sexo e tempo”, de Alceu, e preservado as “Lições de abismo” – do Corção? Pois fez. E o seu gosto pelo passado se confirmou um pavimento abaixo; ali arruinou dois livros de Leonardo Boff e poupou as Confissões de Santo Agostinho, estando um ao lado do outro. Também pulverizou o Ulisses moderno, de Joyce, recusando-se a descosturar o que Homero urdiu há milênios.

Além de passadista, imprevisível. Com Descartes agiu sem método, iniciando a trituração ora pelos cantos, ora pelo meio das páginas. Diferente do que fez com Sartre, o velho bruxo, que preferiu atacar somente pelo âmago, inoculando-lhe por assim dizer a morte na alma.

          Ainda não sei contra quê ou contra quem trabalha Mirtes. Será tão só inimiga do papel, suporte físico das ideias humanas? Também da disposição gráfica, combinação voluptuosa de tinta e talhe? Talvez dos dois e de alguma coisa mais.

      Importa é que Mirtes faz sempre a refeição completa, jantando no concreto o abstrato, no corpo a alma. Nos livros, o homem.

Algoz e vítima