domingo, 12 de janeiro de 2025

Mirtes, a traça

            

Fazia tempo que eu vinha notando, mas o prudente era fingir ignorância. Durante a época de aulas, tudo bem, foi possível manter­-me indiferente. Mas não agora, que longos ócios me obrigam a horas no gabinete. Agora tenho de enfrentar Mirtes e a sua ronha, sua reima de tisanuro roaz.

De noite sinto que me espreita por detrás de uma lombada. Às vezes, sutil, entre linhas ou nalgum subtítulo. Fora isso polvilha infólios e avaria vade-mécuns, Quando não, renitente, rói erratas. E não gosta do passado, Mirtes. Também não quer o futuro. Com a mesma fome devora alfarrábios e ceifa a science fiction. Despreza tanto o nouveau roman, que nenhum bem lhe fez à garganta, quanto as irrupções de neorrealismo latino-americano, que devora a partir das epígrafes. Com uma espécie de deleite reacionário.

Na estante ela prefere o primeiro andar – a família se distribui pelo resto; pois Mirtes é a família, todos com a mesma fome no focinho atávico. Mirtes se posta entre os livros de iniciação. Por algum motivo que não alcanço, detesta propedêutica; já fez em pedacinhos uma Introdução à Filosofia escrita por um grupo de estruturalistas.

Também dilacerou, embora com menor sanha, um guia para o estudo e a compreensão da Semiótica. Não sei o que espere. Mirtes quer me privar de alimento e sentido, eis a verdade. Numa etapa em que não posso voltar atrás, quer me deixar num ermo sem rumo – a traça!

Conforme já disse, ela não é única – é toda uma família. E o traço comum à grei é um dentinho ávido como uma broca, a perfurar como uma ideia fixa. A legião microscópica se dissemina por igual, no intuito bíblico de fazer o homem – seu tesouro de papel – voltar ao pó.

Embora igualitária no seu afã destrutivo, Mirtes demonstra às vezes preferências incompreensíveis. Como entender, por exemplo, que ela tenha destruído o “Idade, sexo e tempo”, de Alceu, e preservado as “Lições de abismo” – do Corção? Pois fez. E o seu gosto pelo passado se confirmou um pavimento abaixo; ali arruinou dois livros de Leonardo Boff e poupou as Confissões de Santo Agostinho, estando um ao lado do outro. Também pulverizou o Ulisses moderno, de Joyce, recusando-se a descosturar o que Homero urdiu há milênios.

Além de passadista, imprevisível. Com Descartes agiu sem método, iniciando a trituração ora pelos cantos, ora pelo meio das páginas. Diferente do que fez com Sartre, o velho bruxo, que preferiu atacar somente pelo âmago, inoculando-lhe por assim dizer a morte na alma.

          Ainda não sei contra quê ou contra quem trabalha Mirtes. Será tão só inimiga do papel, suporte físico das ideias humanas? Também da disposição gráfica, combinação voluptuosa de tinta e talhe? Talvez dos dois e de alguma coisa mais.

      Importa é que Mirtes faz sempre a refeição completa, jantando no concreto o abstrato, no corpo a alma. Nos livros, o homem.

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