A visita à Espanha foi corrida, pois dedicamos três dias a Madri e outros três às cidades de Córdoba, Sevilha e Granada. Tínhamos que fazer opções, e uma delas foi visitar museus. Outra foi se concentrar no centro da capital. Facilitou esta última o fato de nos hospedarmos no Hotel Arosa, que fica numa transversal da cosmopolita e badalada Gran Via.
Sair de Portugal para a Espanha é como deixar um aconchegante quarto de província onde se descansa ao som do fado e ir para uma praça feérica na qual se grita e dança o flamenco. Lisboa tem algumas centenas de milhares de habitantes; Madri, quatro milhões. Mas o contraste não vem dessa diferença quantitativa; vem da combustão interna das pessoas, alguma coisa que se instila no sangue e, caso não seja controlada, pode se refletir em antipatia ou mesmo agressão.
Um de meus termômetros para avaliar a disposição espiritual dos habitantes de uma cidade é o comportamento dos motoristas de táxi. Saindo da estação “Atocha” entramos em um desses transportes e pedi ao motorista que nos levasse ao hotel, que ficava na Rua Salud. Pronunciei mal o nome (disse alguma coisa como “Salute”) e fui corrigido em tom arrogante: “’Salute’ é italiano. É ‘Salud!’”. Interpretei o reparo como uma prova de zelo pela língua e o aceitei com humildade.
Pouco depois chegávamos à tal rua e vi que o táxi que levava nossos companheiros de viagem estava parado em frente ao hotel. Não havia necessidade de esperar que descessem para sairmos do nosso, de modo que informei ao motorista que íamos saltar. Eu e minha mulher já havíamos semiaberto a porta quando ele, vendo que o outro táxi se afastava, arrancou em meio aos nossos gritos. Irritara-se talvez porque pretendíamos descer antes do local combinado, e por pouco não nos jogou no chão. Não pude deixar de notar o contraste: em Lisboa nos deparamos com motoristas ranzinzas, mas em nenhum momento com um maldoso.
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À noite fomos ver o primeiro espetáculo de flamenco a que assistiríamos no país (o segundo seria em Granada). A dança ocorre num tablado que se projeta em direção à plateia. Primeiro entram os músicos e se postam na parte de trás, um ao lado do outro. Alguém dedilha a guitarra, outro percute o pandeiro, e o solista entoa uma melodia de agudos lastimosos que mais parecem uma queixa.
Vêm os dançarinos e começam a se apresentar, um por um, cada qual buscando superar o outro na perícia do sapateado. Os pés vibram, multiplicam-se, tirando da madeira lascas de fúria e som. O matraquear ininterrupto deixa suspensa a plateia (noto ao meu lado um japonês boquiaberto, a máquina fotográfica esquecida no colo).
Depois da primeira dançarina, esbelta e flexuosa como uma índia de Alencar, vem outra de aspecto matronal. Parece uma mamma italiana e não uma dançarina de flamenco. Dela se espera pouco, mais aí está o engano; a mulher tem eletricidade nas pernas. Um lado bom dessa dança é que seus praticantes demoram a se aposentar. Não precisam de todo o corpo -- bastam a alma e os pés.
Duas notas. A primeira sobre a truculência, grosseria e crueza dos espanhóis. Não me canso de dizer a todos que me perguntam: são os mais rudes, os menos amigáveis dos europeus com que tive contato. Não posso falar muito acerca dos europeus do leste, como russos, ucranianos, etc. Eles têm uma má fama, inclusive de serem violentos, desonestos e perigosos. Os países do Leste Europeu que visitei (Polônia, República Checa e Hungria) já são habitués das rotas de turismo e parecem não se enquadrarem no perfil psico(pato)lógico do "mundo russo".
ResponderExcluirA segunda nota é sobre o texto. Como sempre, delicioso e com as tradicionais e maravilhosas figuras de linguagem e trocadilhos.
Um abraço, Chico!