domingo, 19 de fevereiro de 2012

Samba no escuro

Carnaval, ele com vontade de ir para a rua, e a mulher doente no quarto ao lado. Da sala ouvia a tosse -- curru, curru, curru... Era a noite em que sairia o bloco da sua turma. Podia ouvir ao longe o esquentar dos instrumentos e as vozes dos que se dirigiam à concentração. Daí a pouco passariam em frente à sua casa e gritariam, chamando-o. Assim faziam com quem não saía da toca para brincar. O combinado era convocar um por um. Diriam:
- Vamos, Nicanor! Tá na hora!
Não iria. A mulher tossindo no quarto, meio febril, o impediria de aderir à festa.
Levantou-se e foi de novo olhar Emilia. Ela abriu os olhos quando o viu e pareceu adivinhar-lhe o pensamento.
- Quer ir? Vá...
- Não vou deixar você sozinha.
- Não estou morrendo, ora -- disse com débil teimosia e teve um novo acesso de tosse. Curru, curru, curru...
“O diabo é essa tosse” -- ele pensou. Se pelo menos a doença fosse silenciosa! Seria mais fácil ignorá-la, fingir que estava tudo bem. Mas havia esses estampidos, que pareciam um alarme.
- Vá, homem. Eu sei que você quer brincar.
- Não. E pelo amor de Deus pare de tossir!
Nicanor voltou para a sala e ficou uns minutos sentado, ouvindo o barulho que vinha da concentração. O som de tamborins, pandeiros, cornetas tornava-se mais nítido. Intensificava-se o alarido, e dentro em pouco o grupo viria chamá-lo. Alguém diria: “Vem, rapaz. A noite é criança.” Criança? A noite era uma velha moribunda.
Emília parara de tossir. Devia se iludir com esse momentâneo silêncio? Não. A mulher tinha dito: “Pode ir... Vá.” Uma permissão que seria cobrada depois -- se não por ela, pela consciência dele. Tinha um dever.
De repente lhe deu vontade de ir ao quarto dos fundos e abrir o armário onde guardara a fantasia comprada meses antes. Nada excepcional: calça branca, paletó colorido e um chapéu também branco de malandro carioca. Sempre sonhara ser um. O que o atraía na figura do malandro era a lábia, o descompromisso, a jinga para contornar as dificuldades.
Começou a se vestir, devagarinho. Depois foi até o espelho e se olhou. Gostou do que viu. Nem parecia ele... Despertou ao ouvir o som do bloco, que havia chegado em frente à casa. Foi até à sala e espreitou pela janela semiaberta. Se o vissem, ele não poderia resistir. Mal conseguia distinguir as vozes abafadas pelo som dos instrumentos e, agora, pela tosse que recomeçou. Curru, curru, curru... Essa ele ouvia bem.
Antes que o grupo se afastasse, resolveu ensaiar uns passos. Sambou ali mesmo, no escuro da sala. Malandro que é malandro não perde a viagem. Ouvia o bloco se afastando e aos poucos mergulhando no clamor alegre da cidade. No quarto, a mulher continuava a tossir.

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