terça-feira, 12 de junho de 2012

A namorada

Nós brigávamos muito. Os amigos nos viam mais afastados do que juntos, e quando encontravam um dos dois a primeira pergunta que faziam era: “Vocês ainda estão namorando?”. O motivo das brigas era banal, irrelevante, mas comumente (coro em o dizer) estava ligado ao meu ciúme.
Eu era um adolescente inseguro. Tinha pouca experiência em namoros e vivia empaturrado de literatura e filosofia mal assimilada. Ela tinha olhos verdes. Além de verdes, inquietos, como aliás era ela toda. Gostava de olhar a rua, os carros, as pessoas, com uma avidez que me parecia suspeita. Ciumento vê ameaça em tudo. Eu queria deter aquela onda magnética, canalizá-la só para mim. Como não conseguia, arranjava pretextos para cobranças e brigas.
Ficávamos um tempo sem nos ver, e nesse período eu lhe mandava cartas. As cartas eram uma tentativa de explicação, um meio de pedir a ela que me perdoasse. Escrevia-as num estilo que eu hoje chamaria “desesperado-incandescente”. Era tudo iluminado com metáforas, amplificado com hipérboles, recheado de citações pretensamente doutas sobre a vida e o amor.
Eu queria com toda essa retórica impressioná-la, e parece que a coisa funcionava. Dias depois nos reconciliávamos por entre beijos tórridos e juras eternas (com todos os adjetivos a que uma paixão adolescente tem direito). Essa alternância entre brigas e cartas durou um bom tempo. Devo ter escrito umas 15 ou 20, sempre caprichando na forma e achando que, quanto melhor escrevesse, mais eu a impressionava e retinha.
Um dia tivemos uma briga mais séria, por um motivo tão bobo que a enfureceu. Afastei-me por uns dias e tratei de providenciar mais uma torturada missiva, na qual arderia de novo o meu coração. Não foi preciso. O fogo dessa vez veio do outro lado, e nada metafórico. Quando liguei para lhe informar que iria levar a carta, ela me disse que isso era inútil; já queimara todas as outras.
Mal acreditei no que tinha ouvido. Cheguei a pensar que era mentira, ela não podia ter sido capaz de tanta maldade. Mas fora, sim. Incinerara os meus sofridos textos. Se eu queria confirmar, que fosse lá ver as cinzas... Não fui, é claro. E naquela noite me revirei na cama cheio de ódio e frustração. Ao mesmo tempo que a amaldiçoava, eu me achava um imbecil. Por que não tinha feito como Sartre (então meu ídolo), que tirava cópia das suas cartas de amor?
Com o tempo avaliei melhor o episódio, que não deixava de conter uma lição -- uma das muitas que eu aprenderia com as mulheres. As cartas nada mais eram do que um monumento à minha vaidade. Querer suprir por meio delas falhas pessoais era um equívoco que só poderia destruir a relação. À namorada não interessava o escritor, e sim o homem, que não precisava ser “inteligente” para se fazer amar. Bastava ser menos complicado, mais confiante e capaz de demonstrar que gostava mesmo dela.
Não guardo mágoas, mas devo confessar que vez por outra penso nas cartas. Bem que eu gostaria de as reler agora e reencontrar nelas o adolescente ansioso, que procurava num estilo trêmulo confessar o seu amor. Talvez -- quem sabe? -- até tivessem algum valor literário... Não sei se perdoei de todo aquela namorada. Às vezes acho que me casei com ela por uma espécie de vingança.

(Em "A idade do bobo", p. 11)

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