segunda-feira, 4 de junho de 2012

A volta de Edeltrudes

Edeltrudes reaparece depois de um sumiço de meses. Para quem não sabe, esse é o nome que dei à minha lagartixa de estimação. Durante noites ela cruzou a parede do escritório e ficava me olhando com aquele ar ancestral próprio das lagartixas. Isso aconteceu tantas vezes, que se estabeleceu entre nós uma familiaridade silenciosa, feita de contemplação e mudo espanto.
Ela me fitava e assim permanecia por várias horas, como se quisesse me desvendar. Eu a olhava, voltava a ler ou escrever e depois levantava de novo a vista – lá estava ela de focinho arqueado, balançando quase imperceptivelmente a cabeça. A casa dormindo, a família ressonado, Edeltrudes era naquelas horas a minha única companhia. Imóvel, só se abalava para engolir, num gesto rápido, algum mosquito que aterrissara junto dela. Deglutia-o com um enorme pudor, a mandíbula imóvel, como se fosse feio mostrar que precisava comer.
A presença de Edeltrudes era como um símbolo vivo da imobilidade do tempo, que de noite parece tecido de sombras e medos. O período anterior ao sono é sempre enigmático e assustador. Ver Edeltrudes ali pregada, dizer-lhe boa-noite e apagar a luz era como ter a garantia de que ia haver o dia seguinte.
Depois a lagartixa se cansou de mim e desapareceu. Eu não sabia se ela tinha morrido ou se encontrara outra melhor parede – ou algum “dono” mais interessante, pois lagartixas não são como cães. E de repente vejo-a de novo, brancosa e paciente, como se sempre tivesse estado ali. Que garantia tenho de que a Edeltrudes de agora é a de anos atrás? Não seria esta outra, parecida com a primeira?
Nunca gostei de bicho e, pior, jamais algum bicho gostou de mim. Conforta-me pensar que a lagartixa que ora invade o meu espaço de trabalho é a mesma que um dia me conheceu, foi embora e acabou sentindo saudade. E voltou para me dizer que nunca é tarde para a gente restabelecer uma afeição.
O cão e o gato nos cercam e nos intimam, transformando o relacionamento num eterno saldo a pagar. O primeiro quer mais e mais afagos, o segundo quer mais e mais leite. A exemplo de alguns humanos, acabam nos oprimindo com o seu amor. Edeltrudes nunca latiu, nunca miou, dela jamais ouvi a voz. É de uma ternura quieta e silenciosa.
Além do mais, tem a difícil virtude da conveniência; sabe desaparecer quando é preciso. Durante o dia, vendo-me envolvido com pessoas e coisas, tem a generosidade de não me deixar preocupado com ela. Esqueço que existe, e nem por isso ela se ressente e me abandona. Pelo contrário: mal entro no escritório, vejo-a em sua clássica posição – imóvel, serena e aparentemente eterna. Como se no íntimo dissesse: “não te espantes com a minha fidelidade. Venho de furnas e cavernas imemoriais, e nada exijo daqueles a quem amo”.
Alguns podem achar Edeltrudes asquerosa, mas em matéria de amor de bicho foi o melhor que consegui. Consolo-me pensando que, mesmo no domínio das afeições humanas, há escolhas piores. Minha lagartixa é melhor do que muita ”víbora” que anda por aí...

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