sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Paixão e escrita

Dizem que a paixão cega, por isso os apaixonados são indiferentes aos defeitos do seu objeto. Uma tradução aproximada dessa verdade se encontra no velho ditado: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”.
Os apaixonados são movidos por razões que só Freud explica – e aqui não faço jogo de palavras. Segundo o criador da psicanálise, nossa atração pelo objeto amoroso não se justifica racionalmente. Decorre de nebulosas determinações inconscientes, que remontam a nossas vivências infantis.
O amor paixão (pois há o amor amor, que não se enquadra no modelo a que me refiro) não passa pelo teste de realidade, pois se alimenta da fantasia. Alguém já escreveu que a gente se apaixona por metáfora, ou seja, pela semelhança que encontra entre o ser real e uma imagem dele moldada em nosso inconsciente. Nunca são a mesma coisa, e um (o ser real) pode até desmerecer o outro.
Eis por que a paixão tem um tempo, um prazo de validade; vai sucumbindo à proporção que do ser idealizado emergem os traços da pessoa real. É mais ou menos como naquele truque de espelhos em que a mulher se metamorfoseia em macaco. Lembro-me de um número desse tipo na Festa das Neves. Aos poucos Monga, a Bela, vai se transmutando num símio feio e agressivo. Só que, ao contrário do que ocorre na encenação, na vida a mudança não tem volta. O jeito então é domar o macaco, habituar-se com sua feiura, aprender a conviver com ele. Essas são artes do amor.
Enfim, ninguém se apaixona movido pela razão. Por isso achei curiosa esta passagem publicada num site de adolescentes:
“Sempre me correspondi com meus amigos via e-mail e acabei conhecendo outras pessoas por meio da rede. Cheguei a namorar um dos caras com os quais eu conversava. Mas fui percebendo, com o tempo, que ele escrevia muito mal. Uma vez cheguei a lhe devolver um e-mail com as correções. Ele ficou uma fera. Mas não dava para admitir coisas como ‘ficou para traz’, ou ‘voçê’, ou ‘vamos comê’. O namoro perdeu um pouco do brilho. Se antes de iniciar o relacionamento eu soubesse que ele escrevia assim, provavelmente não teria nem começado.”
A garota que escreveu isso é uma exceção. Para ela o feio linguístico não parece bonito; pelo contrário, é um defeito que pode tornar inviável um relacionamento. Samara (é o nome dela) não está disposta a se apaixonar por quem desconhece a língua a ponto de cometer erros grosseiros de ortografia. Quer alguém que saiba um mínimo de gramática.
Dirão os românticos que Samara afirma isso porque nunca amou de verdade. Pode ser. Mas o fato de ela condicionar a paixão a tais habilidades revela um espírito sério e cuidadoso. Ela no fundo sabe que a ligação amorosa começa com o corpo, mas se alimenta mesmo das ações e das palavras. E não dá para viver com quem não sabe se expressar.

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Para além do esquecimento