sábado, 20 de abril de 2013

Gullar e a gramática


Um poeta tem obrigação de saber gramática? Quem acha que não, deve ler a entrevista de Ferreira Gullar à revista “Língua Portuguesa”. O autor de “A luta corporal” e “Poema sujo” se mostra de um rigor surpreendente quanto a certos usos determinados pela norma. A diferença entre “este” e “esse”, por exemplo, que mesmo alguns gramáticos tendem hoje a minimizar.
Gullar defende a gramática em nome da clareza e da precisão. Não se pode separar rigor semântico de rigor gramatical, pois “as palavras têm sentido preciso e, para escrever bem, é preciso saber o significado, as relações entre elas, quais se combinam, como convivem”.
Geralmente os aspirantes a poetas ignoram essa lição. Na universidade eu recebia muitos originais de poemas, e não eram poucos os que apresentavam falhas de ortografia, regência, concordância. Cada jovem daqueles se achava um gênio da língua e certamente considerava humilhante uma consulta a Celso Cunha, Rocha Lima ou Evanildo Bechara.
O que alimenta um ponto de vista como o esse é a má compreensão da noção de “desvio”. Para certas correntes da teoria literária, a criação decorre de um desvio da norma, ou seja, de uma transgressão aos preceitos gramaticais. A norma legisla sobre o uso comum, não sobre o estilo.
Não há dúvida de que isso é verdade, conforme demonstram figuras como a silepse. Quando Vieira escreve “Os portugueses sois ladrões”, está “infringindo” uma norma de concordância. Trata-se de uma infração aparente; Vieira é português, mas não se considera ladrão. Daí ter usado o verbo na segunda pessoa (vós), embora o sujeito estivesse na terceira (eles, os portugueses).
Ninguém faz isso ignorando a gramática. Pelo contrário: é preciso conhecê-la muito bem. Embora constitua uma transgressão normativa, o “desvio” traz implícita a norma. Do contrário, não seria percebido como tal.
Constatações como essa transparecem da entrevista de Ferreira Gullar, que devia ser lida por todos os aspirantes a escritores. Para ele o embasamento gramatical, ao contrário do que alguns pensam, não é empecilho à criação.

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