(Escrevi
esta crônica há alguns anos, quando quiseram afogar a Festa das Neves na Lagoa.
O bom de reler o texto é constatar que ela resistiu.)
Não
sei qual vai ser a avaliação oficial da Festa das Neves. Dirão que ela foi
animada, uma das melhores dos últimos anos, e possivelmente alguns vão
acreditar. Como palanque a Festa sempre é boa. A apresentação de artistas de
fora em shows tarde da noite confirma o prestígio que os órgãos públicos dão ao
evento e agrada sobretudo aos notívagos. Novas lâmpadas para a Lagoa são um bem
que se incorpora à cidade e, aparecendo no bojo da Festa, parecem um termômetro
luminoso e feérico do seu sucesso.
A verdade, contudo, é que a
Festa das Neves perde a graça a cada ano. Repetitiva e esgarçada na imensa
Lagoa, mais parece um conjunto de parques de diversão sem qualquer vínculo
espiritual com o motivo maior das comemorações. Não quero aqui bancar o
saudosista, mas é fácil ver que o novo local está aos poucos matando o
tradicional evento. Desfeita a ligação entre o sagrado e o profano, perde-se
cada vez mais a referência que, durante décadas, serviu de motivo às
comemorações. Longe do seu foco irradiador, a Festa órbita em pobreza e
desleixo.
Sei que não se pode reeditar
a singeleza e o lirismo dos anos passados, quando ela conseguia empolgar a
classe média e se diversificava em atrações de apuro e bom gosto. Os
profissionais liberais tinham cada qual a sua noite e se envolviam numa disputa
alegre para vencer os concorrentes. Namoros e casamentos começaram ali, a
partir de bilhetinhos que eram, ao mesmo tempo, esforçadas tentativas poéticas.
A Festa tinha a exuberância decorrente do prestígio que a sociedade, como um
todo, lhe conferia.
Hoje não é fácil tirar a
meninada do shopping, onde é possível comer, se divertir e comprar com a máxima
comodidade possível. E fica mais difícil atrair a garotada e seus pais quando
se cortam os atrativos de um evento que, por excelência, alimenta-se do vínculo
com a tradição.
Há cerca de três anos
tentou-se restaurar um pouco desse clima, inclusive com a reedição do
jornalzinho Nonevar, órgão oficial da Festa que circulou nos primeiros anos do
século. Nele Augusto dos Anjos escreveu quadras comerciais, criticou os smarts,
almofadinhas da época, e fez o hiperbólico perfil de algumas beldades
casadoiras. Mas o Nonevar parece que não resistiu ao pragmatismo dos novos
tempos. Além do mais, feito para circular em espaços pequenos ou no recesso dos
pavilhões, não teria como sobreviver na imensidão da Lagoa.
Por automatismo ou
fidelidade, fui como tenho feito há anos dar o meu passeio na parte profana dos
festejos. Esperava-se algo novo além de Monga, a mulher que vira macaco, ou
dessas engenhocas radicais que nos centrifugam as vísceras a pretexto de nos
divertir. Como estou velho para esportes radicais, fui ver a metamorfose de
Monga – e mesmo esse velho truque de espelhos não é mais o que era. Com um
monte de holofotes piscando, muito barulho e má técnica, e apesar do anúncio
que falava em nos roubar a alma à meia-noite, não assustou sequer a minha filha
de doze anos.
E que dizer do
cachorro-quente, que tem sido a pièce de
resistence gastronômica do evento? Entre tantas barracas, talvez eu não
tenha tido sorte na escolha. Pois comi alguma coisa esfiapada que diziam ser
carne, afogada num molho insípido que tinha cheiro e gosto de água. E assim,
este ano, nem pelo tradicional cachorro-quente
a festa das Neves valeu.
Houve anos, e não tão
remotos, em que ela foi melhor. Sei que essa alternância faz parte do
calendário das festas e mesmo da vida, em que tudo obedece a ciclos e
fases. Mas não podemos esperar que
apenas o tempo, sem qualquer interferência nossa, traga de volta o brilho às
tradicionais comemorações em honra da padroeira. Dividir a Festa em duas, está
mais do que provado, é tirar-lhe um pouco a alma. Sem a proximidade com a liturgia e sem o
antigo prestígio que lhe dava a classe média, ela agoniza em broncos espasmos
de som, e de luz.
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