domingo, 3 de julho de 2016

Carta a Berta (4)

Berta querida:

No São-João, a Lava-jato fez mais uma quadrilha dançar. Dessa vez prenderam uma turma que roubava funcionários e pensionistas; o roubo, segundo explicaram os policiais, ocorria por meio de empréstimos consignados. Veja que maldade, Berta: os velhinhos tinham que pagar, além dos juros, um percentual para o bando.  
       Por essas e outras é que sempre fui contra essa forma de conseguir dinheiro. Uma vez Celeste propôs que fizéssemos um empréstimo para a sonhada viagem à Europa (a gente tem este sonho desde que se casou, há 30 anos). Convenci-a a desistir; melhor seria poupar. Começamos, então, a juntar o que sobrava no fim do mês. Não há previsão de quando vai ser a viagem, ou mesmo se ela vai existir, mas a esperança é a última que morre (atualmente, no Brasil, ela tem morrido mais cedo).    
         Passamos o São-João em casa, ouvindo os estampidos lá fora e sentindo o ardor da fumaça em nossas narinas. Já tivemos São-Joões melhores, com fartura de pamonha, canjica, tapioca, munguzá. Agora a crise nos permitiu no máximo comprar um pé de moleque aguado, que dividimos com “Bolsonaro” (ele come tudo, mas enjeitou o bolo; certamente desconfiou de que não era legítimo).  
       Por falar em “Bolsonaro”, nessa época ele se assusta muito com as bombas. Quando ouve os foguetões corre para o quarto, mete-se debaixo da cama e fica lá, tremendo. Parece um neurótico de guerra. Nosso cachorro tem estado mesmo esquisito.  Anteontem jantávamos na copa quando o ouvimos latir e rosnar diante da televisão, que fica na sala. Corremos para ver o que estava acontecendo. Aparentemente, nada demais: a televisão estava transmitindo a parada dos LGBTs. Não entendemos por que isso o deixava tão furioso. Mas, enfim, cada qual (homem ou bicho) tem suas peculiaridades!
         Celeste está muito preocupada com os rumos do Brasil. Para quem já foi do fã-clube de Wando (desconfio de que era uma daquelas garotas que jogavam calcinhas para ele), minha mulher evoluiu muito de mentalidade. Comentou comigo a incoerência de Temer, que havia criticado o descontrole orçamentário do governo anterior e acaba de dar um aumento aos servidores públicos. “E vai aumentar o Bolsa Família num percentual maior do que o prometido por Dilma!” – ressaltou com ironia (para me ferir, claro, pois ela sabe que não sou dos que consideram o impeachment um golpe).
Fiquei pensando com os meus botões no que Celeste havia dito, mas infelizmente não chegamos a um acordo (meus botões achavam uma coisa, e eu outra). Fui dormir chateado. Infelizmente é nesse estado de ânimo que me despeço. Na próxima carta, quem sabe, você me encontrará melhor.

Do seu desalentado      
Nicanor.

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