quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A vidente

Ele mais uma vez dormira mal. Com tanta gente sendo presa, tinha medo de não sair ileso. Envolveu-se em algumas tramoias, é certo, mas como poderia resistir? Agiu por influência de amigos e porque isso era “da cultura”, todo mundo estava fazendo. Do grupo participavam cerca de dez, todos com codinomes; o dele era “Menestrel”. Nunca entendeu por que resolveram chamá-lo assim, já que não gostava de música e tinha péssima voz. Talvez justamente por isso; a turma gostava de ironizar.
Começou a folhear o jornal para ver se havia alguma menção ao seu nome. Leu uma nota sobre um colega que tinha sido pego, e sentiu um arrepio; amanhã poderia ser ele. Saltou da página política para os Classificados. Foi quando viu o anúncio. Era pequeno e mal dava para se perceber os dizeres: “Mãe Cordélia – Vidente -- Saiba tudo sobre o seu futuro.”.
Não era de acreditar nessas coisas. Por uma opção ideológica feita na juventude,  achava que esse tipo de crendice era fruto de alienação burguesa. Mas agora estava precisando muito de conforto. “Mãe Cordélia.” O nome tinha um quê de apaziguador. Anotou o endereço e tratou de ir para lá.
Enquanto dirigia, pensou na possibilidade de ela confirmar os seus temores. Essa hipótese era terrível, mas pelo menos poria fim à dúvida. Ele trataria de se prevenir, providenciando álibis e contratando bons advogados. O pessoal estava fazendo isso, e às vezes com sucesso.
A casa era pequena, pintada de verde (a cor da esperança!) e com um lustre envelhecido pendendo do teto do alpendre. Tocou a campainha. Pouco depois apareceu uma mulher de vestido longo e cabelos presos num lenço. Tinha o ar sério, mas cordial. Sem lhe perguntar nada, mandou-o entrar. Ele achou muito significativo aquele silêncio. A circunspecção cai bem em quem costuma esquadrinhar os mistérios do tempo. 
A mulher o introduziu num quarto pequeno e penumbroso, que cheirava a alfazema.  Mandou-o sentar num dos lados de uma mesa em cujo centro havia um globo transparente coberto por um pano colorido. Ele tentou explicar por que estava ali. Falou em caça às bruxas, abuso do Judiciário... A mulher sorriu:   
-- Você não é o primeiro que vem aqui por causa disso. Já recebi vários.
Ela tinha experiência! Se fora muito procurada é porque gozava de boa fama, e fama não se conquista à toa. Mãe Cordélia retirou parte do pano verde e ficou olhando a superfície translúcida. Fechou os olhos por cerca de um minuto. Depois de os abrir, suspirou e disse:  
-- Sossegue. Não há nada contra você. Eles não lhe alcançaram.
Achou enigmática essa última frase, mas preferiu se deter na anterior. “Nada contra você.” Ela não ia mentir; devia ter responsabilidade num assunto tão delicado. Sentindo que Mãe Cordélia não acrescentaria mais nada, ele perguntou quanto lhe devia.
-- Pague o que achar que mereço. Os outros foram generosos...
Abriu a carteira e deu boa parte do que tinha.  Acostumara-se a andar abonado, já que nos últimos meses não podia correr o risco de passar cheques ou usar cartões. A mulher agradeceu com um sorriso (mais largo do que o anterior) e o conduziu à saída.
Nessa note ele dormiu sem a ajuda do ansiolítico. Teve um bom sono, e ainda sonhava quando foi bruscamente despertado pela esposa:
-- Acorde, pelo amor de Deus! Tem policiais aí fora.
Sem tirar o pijama, ele foi abrir a porta. Um dos homens lhe entregou a intimação:     
-- O senhor vai ter que nos acompanhar. Esperamos aqui que troque de roupa.
Ele se vestiu rápido, beijou a mulher (que parecia resignada) e seguiu com os agentes. Na delegacia lhe explicaram que o prendiam porque pesava contra ele a suspeita de desviar dinheiro público. Graças a uma delação, tornara-se um dos alvos da Operação Bola de Cristal.


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O silêncio do inocente