segunda-feira, 5 de novembro de 2018

O tema de redação do Enem 2018

A Internet era uma das apostas dos professores para a redação do Enem 2018. A dúvida estava em qual aspecto da WEB a banca poderia enfocar; em 2011, por exemplo, ela abordou o desafio de manter a privacidade num universo em que são tênues os limites entre o público e o privado. Desta vez, solicitou que os candidatos se posicionassem sobre a manipulação do comportamento dos usuários pelo controle dos dados que circulam na Rede.  
O tema não poderia ser mais atual e oportuno. A imprensa tem noticiado com bastante frequência ações que atestam essa manipulação. Seja pela invasão de hackers, seja pela seleção de algoritmos que privilegiam ideologias ou produtos, grandes conglomerados do setor de informática buscam selecionar o que deve e o que não deve chegar aos usuários. Essa atitude, que é um misto de censura e publicidade enganosa, tem colocado em xeque a legitimidade da Web como instrumento da globalização. Ao mesmo tempo acena com a possibilidade de que, se esse processo não for detido, os internautas acabem se transformando em bonecos sem consciência nem vontade.
Como sugestões para o desenvolvimento do tema, a banca apresentava quatro textos motivadores – sendo o terceiro um quadro demonstrativo do largo uso da internet, por jovens e adultos, para funções as mais diversas. Nos três outros, expõem-se diferentes aspectos da manipulação. O primeiro descreve o mecanismo pelo qual se selecionam os produtos enviados a usuários de um serviço de música digital. Um algoritmo fundado em preferências iniciais praticamente determina as escolhas futuras, de modo que se tira do cliente qualquer possibilidade de opção. Ele pensa que é livre, mas seu gosto está determinado.
No texto 2 repete-se o alerta, que se dirige agora aos usuários das redes sociais. Os dados a que eles têm acesso são filtrados por um “exército de moderadores” que controlam aquilo que deve ser eliminado (a propósito, você escolhe mesmo os amigos com quem se relaciona no Facebook? Por que só as mesmas pessoas recebem e curtem suas postagens?). Os algoritmos decidem o que você pode dizer aos seus seguidores; eles opinam por você. Como às opiniões corresponde uma identidade, eles acabam tomando o seu lugar no mundo (esse parece ser o propósito inconfesso da Inteligência Artificial!).  
Os alertas quanto à possibilidade de manipulação se completam no texto 3, que aborda os tópicos de notícia selecionados para chegar até o usuário. Tal seleção põe em dúvida a relevância desses tópicos para a tomada de decisões. Pensamos conhecer os principais aspectos de um problema (por exemplo, os efeitos da imigração na economia de um país), mas deles conhecemos apena uma parte. Isso evidentemente compromete a natureza das nossas decisões, que podem muitas vezes ser injustas.
Uma dúvida dos estudantes é se era pertinente abordar as fake news sem fugir ao tema. A meu ver, sim. O importante era não limitar a abordagem às “notícias falsas”.  As fake news manipulam dados, e na linguagem da informática dado é tudo que entra no sistema – de traços emocionais a fatos ou comportamentos que tendem a se repetir. O computador os analisa e extrai deles determinados padrões (os chamados algoritmos). A partir daí é possível promover manipulações que venham deturpar a compreensão do passado e condicionar ações futuras (como a vitória numa eleição).  
Possuir dados significa ter poder, pois a partir deles torna-se possível elaborar algoritmos que preveem e determinam escolhas não apenas individuais como também coletivas. Essa prática, denominada dataísmo, é longamente discutida por Yuval Noah Harari em “Homo Deus” (de quem, a propósito, apresentamos em um dos nossos Simulados uma passagem retirada do best-seller “Sapiens; uma breve história da humanidade”).  
         Segundo Harari, a base do dataísmo é o reconhecimento, promovido pela biologia e pela ciência da computação, de que “organismos são algoritmos e de que girafas, tomates e seres humanos são apenas métodos diferentes de processamento de dados” (p. 371). Esse ponto de vista tem hoje um largo respaldo científico.
Diante disso, não há por que num tema como a manipulação de dados pela internet deixar de fazer menção às fake news, que buscam confundir a percepção que as pessoas têm da realidade e, por meio disso, “dominar” suas escolhas. As notícias falsas não esgotam as possibilidades de manipulação, repito, mas constituem um bom exemplo de como é possível destruir (ou enobrecer) a imagem de pessoas e instituições a fim de mudar o conceito que se tem delas.
O fato de as fake news não terem sido realçadas nos textos motivadores não significa que o candidato devesse desprezá-las. Como o nome o diz, os fragmentos da coletânea visam motivar e não apresentar tópicos exclusivos; fica a critério do candidato explorar outros que também sejam relevantes. 

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