sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Quadras gramaticais


                  1
Tem gente que não consegue
entender uma ironia.
Já vi mulher dar a bênção 
ao ser chamada de “tia”!

                  2
Usar o diminutivo
nem sempre mostra carinho.   
Quanto não há de desprezo
quando se diz “Pobrezinho...”!

                  3
A crase é o pesadelo
daquele pobre rapaz.                                         
Nunca entendeu como um “a”
pode ser também dois “as”.

                 4
Outra coisa, na gramática,
lhe parece não ter nexo:    
como é que uma palavra
pode ser um “objeto”? 

                 5
Coitado do verbo “ser”!
Tão virginal e pudico,
foi incluído no grupo    
dos verbos “copulativos”.

                 6
Se o que foi deixa saudade    
e nos faz doer o peito,   
como é que pode o pretérito 
ser chamado de “perfeito”?

                 7
Gramática e amor se bicam.   
São como fé e ciência.
Não dá pra dizer “Te gosto”
sem massacrar a regência.

                 8
O verbo é o centro de tudo
(a base da oração),
mas concorda com o sujeito 
mesmo contra a opinião.

                 9
Falar em sujeito oculto
é dar um tiro no pé.  
Se está oculto, por que
sempre se sabe quem é?!

               10
O oximoro nem sempre       
altera a lógica e o siso.   
Alguém pode, endinheirado,
não passar de um pobre rico...

               11
Na gramática da vida
nem tudo é bem arrumado.  
Nela sobram os sujeitos
a quem faltam predicados.

               12
Que diria a interjeição
se a nós ela falasse?
Que a dor e a alegria
filiam-se à mesma classe!

               13
A língua define o “gênero”,
que hoje é vago e incerto.
Ao registrar a criança,
é bom deixá-lo em aberto.

               14
Não dá pra compreender
(a não ser por masoquismo)
que alguém prejudicado
“corra atrás” do prejuízo!

               15
Cabe na polissemia  
esta fatídica trapaça:
quem mais faz graça da vida
é quem nela não vê graça.

               16
Às vezes a homonímia
deixa a gente numa boa.
Coroa minha autoestima
quem me chama de coroa.

                17
Se um só ponto já basta 
para fechar a sentença,  
como é então que três pontos
indicam uma... reticência?!

                18
O hiato no casamento
daqueles dois é assim:
quando ela hoje diz “ai”, 
ele diz “não estou a-í”.

                19
Não se acentua oxítono
terminado em “i” e “u”.
Só mesmo “tomando uma”
para acentuar “Pitu”.

                20
Nem toda metáfora é nobre.
Quando ele a chama de “anjo”,
quer que ela abra as asinhas
e acolha seus desarranjos.

                21
O melhor do paradoxo
é o que dele está além.  
Vê mais longe quem percebe  
que a multidão é ninguém.

                22
O tal “plural da modéstia”
é conversa pra bocó.
Onde é que se mostra humilde
quem diz “Somos o melhor”?!

                23
“O mundo é dos mais espertos”
-- eita eufemismo dos bons!
O sentido verdadeiro  
é que o mundo é dos ladrões!

               24
Foi pela sinestesia
que ela matou nosso caso: 
o olhar endurecido! 
o sorriso enregelado!

               25
Palavras mudam de classe.   
Mas quem vai reclamar disso  
quando a garota lhe dá 
um “sim” bem “substantivo”?

               26
Tem gíria barra-pesada.  
É o caso de “desova”,
que traz a ideia sinistra       
de fazer do ninho a cova.

               27
Se o professor lhe pergunta
o que é aliteração,
ele tateia, tropeça,  
tremelica – e não diz não!

               28
Por pensar que antonomásia
fosse o nome da inspetora,
ele hoje é conhecido 
como “o Bobo da Escola”.

               29
Um caso de metonímia
é o que ocorre nas bodas.
Pede-se ao pai da moça “a mão”,
e fica-se com ela toda!

               30
Imitar o som do grilo
é só onomatopeia.
Já ouvir alguém cricri
é de torrar a ideia!

               31
Por verbos defectivos 
nem sempre tenho respeito.  
Quando estou “com o cão no couro”,
eu lato, zurro e trovejo!

               32
Na língua se acha o tal,  
porém não passa de um tonto, 
pois decora os coletivos
mas não sabe usar o ponto.

               33
Se a metáfora é um clichê,
perde a beleza e o frescor.
Evite dizer que a moça
de quem gosta é “uma flor”.

               34
Muitos usam da hipérbole
sem temor ao destempero.    
Eu sou o único no mundo
que não suporta exagero!     

               35
Explicando o arcaísmo,
disse-nos o lente, à sorrelfa: 
“Português bom e castiço    
é o que de antanhos se mescla...”.

               36
O quiasmo é a inversão
das palavras em espelho.  
Entendê-lo não é difícil.
Difícil é não entendê-lo.

               37
Reflexão crucial     
que a paronomásia inspira:    
há momentos nesta vida   
em que a gente ou para, ou pira!

               38
A prática do intertexto   
não vai alterar o jogo.  
“Minha terra tem palmeiras”,
mas meu time é o Botafogo.

                39
Só a palavra-centauro
traduz bem a alternância
entre ansiedade e espera
em que me encontro: esperânsia.

                40
Se quer dar ao seu leitor
uma escrita clara e reta,
do hipérbato não abuse.   
Prefira a ordem direta.

                41
Seu desprezo é um pleonasmo
que a mim irrita e maltrata,
pois ela fica em silêncio
e não diz uma palavra!

                42
A imagem do anacoluto  
figura o meu abandono:
a moça, não se lhe dá 
se me faz perder o sono...

               43
         Quando o mestre falou “zeugma”,
quase nos deixou sem voz.  
Não entendemos a ele;
muito menos ele, a nós.



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O silêncio do inocente