sexta-feira, 29 de março de 2019

Fanatismos

    
       Em que diferem o fanático religioso e o fanático ideológico? Ambos têm em comum a intolerância com os que não partilham dos seus credos e a tendência a julgá-los como filiados ao credo oposto. Não aceitam o meio-termo – essa instância de sensatez na qual, segundo os gregos, está a virtude. Para eles, quem não milita em suas hostes fatalmente se vincula às hostes contrárias.
Esse tipo de raciocínio abre caminho para a autoindulgência e a prévia condenação do outro. É a morte da autocrítica e a entronização de mitos e dogmas. Em vão a realidade insiste em perfurar essa delirante carapaça, pois o caminho está fechado à razão.
          Mas (eis a diferença) no fanático religioso a intolerância decorre da crença num Além. Essa crença, mesmo ilusória, de certo modo reduz a responsabilidade do indivíduo que a nutre. É a Divindade (seja ela qual for) quem o inspira e requisita. Isso lhe turva a consciência, mas o faz agir de “boa-fé.
Já o fanático ideológico não acredita em ilusões metafísicas que lhe inspirem as convicções. É um pseudorracionalista, alguém que considera a hipertrofia intelectual como um domínio da razão.
Seu propósito é rejeitar tudo que pertence ao outro lado (mesmo bom) e acolher tudo que pertence ao seu lado (mesmo mau). Sua ética, tendenciosa, baseia-se no ressentimento. Divide o mundo entre os que pensam igual a ele e os outros, nos quais é incapaz de enxergar virtudes.
Como sou um anarquista de extração milloriana (“Todo homem é minha presa”), esquivo-me de militar em um lado ou outro e busco (quando deixam) protestar contra os erros que há nos dois. Afinal, nenhum ser humano está imune à recriminação (e sobretudo à anedota).

Um comentário:

  1. Nelson Rodrigues: "- Eu me recuso absolutamente a ser de esquerda ou de direita. Sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão. Cheguei a essa atitude diante de duas coisas: lendo dois volumes sobre a guerra civil na História. Verifiquei então o óbvio ululante: de parte a parte todos eram canalhas. Rigorosamente todos. Eu não quero ser nem canalha de esquerda nem canalha de direita." (Clarice Lispector, 1920-1977. Entrevistas/Clarice Lispector. Organização de Claire Williams; preparação de originais e notas biográficas de Tereza Monteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 28)

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O silêncio do inocente