quarta-feira, 27 de março de 2019

O dia em que conheci Nelson Rodrigues

Foi em 1980. Eu fazia o Mestrado em Teoria da Literatura na UFRJ, e entre outras matérias cursava Oficina Literária com o escritor Cyro dos Anjos. Cyro criara essa disciplina na antiga Universidade do Distrito Federal e depois passou a lecioná-la no Rio.
Havia muita curiosidade pelas suas aulas, que funcionavam basicamente a partir da produção dos alunos. O professor recebia crônicas, poemas, fragmentos de romances em determinada semana e os comentava na semana seguinte. Meu interesse era grande, e maior a satisfação quando ele comentava algum escrito da minha modesta lavra (ou seria "larva", pois naquele tempo eu não tinha desabrochado ainda – se é que isso algum dia chegou a ocorrer).
Certa manhã, estava eu absorto num dos comentários de Cyro quando vejo do lado de fora da sala o colega Virgílio Moretzsohn me fazendo sinais. Ele era aluno da turma, mas não viera nesse dia. E agora me chamava com uma insistência sôfrega. Levantei-me e fui saber de que se tratava.
– Vem! Vem conhecer Nelson Rodrigues! Ele está ali no carro da Globo e vai nos levar até o Leblon.
O Leblon era onde morava Virgílio. Ouvi esse apelo e, claro, não hesitei; Nelson Rodrigues sempre fora uma das minhas grandes admirações. Voltei à sala, peguei meus livros e cadernos, pedi licença ao professor e segui o amigo.
Vi então na calçada da Av. Chile, junto ao automóvel preto da emissora, um senhor meio corcunda que nos esperava sorrindo. Ele me estendeu a mão e sussurrou: “Doce figura”. Costumava se dirigir às pessoas, conhecidas ou não, com esse açucarado epíteto.
Cumprimentei-o e me sentei com ele no banco de trás. Virgílio foi na frente com o motorista. Mesmo com voz fraca e debilitada, Nelson não se esquivou de conversar. Nessa época Ronaldo Lima Lins, um dos professores da Universidade, preparava sobre ele a sua tese de Doutorado. “O cara tem bossa mesmo?”, perguntou-me o autor de “Vestido de noiva” no tom coloquial que era literariamente uma de suas marcas. Falei-lhe da minha admiração pelo seu teatro e pela sua prosa, que eu conhecia havia muito tempo.  
Durante a viagem, lembrei-me das tardes em que eu pegava o ônibus na Av. Epitácio Pessoa (altura de Miramar) e ia ao Ponto Cem Réis para filar “O Globo” na banca de Edinaldo e ler as “Confissões”. Eram para mim leitura obrigatória, juntamente com as crônicas de Carlinhos Oliveira no “Jornal do Brasil”.
Eu gostava da sua prosa expressionista. Admirava as imagens que ele não se cansava de repetir sem contudo nos cansar – imagens ao mesmo tempo eruditas e cheias de humor, como a do “anão de Velásquez”, a da “mulher gorda e patusca como uma viúva machadiana”, a do “canalha Palhares” (que cometera a cafajestice de beijar a cunhada).
A que mais o popularizou foi certamente a do “o óbvio ululante”, enfático e irretocável pela precisão (nada pode ulular mais do que o óbvio!). As imagens referiam-se a tipos (o sátiro, o lúbrico, o carola) que resumiam as obsessões do autor; ele era um obsessivo confesso e chegou a dizer que ninguém faz nada de importante neste mundo sem obsessão. Sua prosa, que durante algum tempo tentei ridiculamente imitar, revelava forte influência de Eça de Queiroz -- mas sem o espírito de seriedade do português. E vinha perpassada de uma melancólica ironia, que lembrava Machado de Assis.
Chegamos enfim ao Leblon, onde eu e Virgílio descemos e vimos o automóvel da emissora prosseguir rumo à residência do escritor.  Cerca de três meses depois Nelson embarcaria em outro carro preto, dessa vez para o último trajeto que ia percorrer na Terra. Fiquei devendo ao amigo Virgílio esse encontro. Conheci Nelson quando ele estava perto de se tornar  um anjo (pornográfico?). O fato é que, anjo ou demônio, ele para mim sempre foi imortal.


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