Foi em 1980. Eu fazia o Mestrado em
Teoria da Literatura na UFRJ, e entre outras matérias cursava Oficina Literária
com o escritor Cyro dos Anjos. Cyro criara essa disciplina na antiga
Universidade do Distrito Federal e depois passou a lecioná-la no Rio.
Havia muita curiosidade pelas suas
aulas, que funcionavam basicamente a partir da produção dos alunos. O professor
recebia crônicas, poemas, fragmentos de romances em determinada semana e os
comentava na semana seguinte. Meu interesse era grande, e maior a satisfação
quando ele comentava algum escrito da minha modesta lavra (ou seria "larva", pois
naquele tempo eu não tinha desabrochado ainda – se é que isso algum dia chegou
a ocorrer).
Certa manhã, estava eu absorto num dos
comentários de Cyro quando vejo do lado de fora da sala o colega Virgílio
Moretzsohn me fazendo sinais. Ele era aluno da turma, mas não viera nesse
dia. E agora me chamava com uma insistência sôfrega. Levantei-me e fui saber de
que se tratava.
– Vem! Vem conhecer Nelson Rodrigues!
Ele está ali no carro da Globo e vai nos levar até o Leblon.
O Leblon era onde morava Virgílio. Ouvi
esse apelo e, claro, não hesitei; Nelson Rodrigues sempre fora uma das minhas
grandes admirações. Voltei à sala, peguei meus livros e cadernos, pedi licença
ao professor e segui o amigo.
Vi então na calçada da Av. Chile, junto ao
automóvel preto da emissora, um senhor meio corcunda que nos esperava sorrindo. Ele me
estendeu a mão e sussurrou: “Doce figura”. Costumava se dirigir às pessoas,
conhecidas ou não, com esse açucarado epíteto.
Cumprimentei-o e me sentei com ele no
banco de trás. Virgílio foi na frente com o motorista. Mesmo com voz fraca e
debilitada, Nelson não se esquivou de conversar. Nessa época Ronaldo Lima Lins,
um dos professores da Universidade, preparava sobre ele a sua tese de
Doutorado. “O cara tem bossa mesmo?”, perguntou-me o autor de “Vestido de noiva”
no tom coloquial que era literariamente uma de suas marcas. Falei-lhe da minha admiração pelo seu teatro e pela sua prosa, que eu conhecia
havia muito tempo.
Durante a viagem, lembrei-me das tardes
em que eu pegava o ônibus na Av. Epitácio Pessoa (altura de Miramar) e ia ao Ponto
Cem Réis para filar “O Globo” na banca de Edinaldo e ler as “Confissões”. Eram para
mim leitura obrigatória, juntamente com as crônicas de Carlinhos Oliveira no “Jornal
do Brasil”.
Eu gostava da sua prosa expressionista. Admirava
as imagens que ele não se cansava de repetir sem contudo nos cansar – imagens
ao mesmo tempo eruditas e cheias de humor, como a do “anão de Velásquez”, a da “mulher
gorda e patusca como uma viúva machadiana”, a do “canalha Palhares” (que
cometera a cafajestice de beijar a cunhada).
A que mais o popularizou foi certamente
a do “o óbvio ululante”, enfático e irretocável pela precisão (nada pode ulular
mais do que o óbvio!). As imagens referiam-se a tipos (o sátiro, o lúbrico, o
carola) que resumiam as obsessões do autor; ele era um obsessivo confesso e chegou
a dizer que ninguém faz nada de importante neste mundo sem obsessão. Sua prosa,
que durante algum tempo tentei ridiculamente imitar, revelava forte influência
de Eça de Queiroz -- mas sem o espírito de seriedade do português. E vinha perpassada
de uma melancólica ironia, que lembrava Machado de Assis.
Chegamos enfim ao Leblon, onde eu e
Virgílio descemos e vimos o automóvel da emissora prosseguir rumo à residência do
escritor. Cerca de três meses depois
Nelson embarcaria em outro carro preto, dessa vez para o último trajeto que ia percorrer na Terra. Fiquei devendo ao amigo Virgílio esse encontro. Conheci
Nelson quando ele estava perto de se tornar um anjo (pornográfico?). O fato é que, anjo ou demônio, ele para mim sempre foi imortal.
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