sábado, 11 de maio de 2019

Divagando se vai longe (17)


Nada pode acontecer de pior a uma pessoa do que obter aquilo que mais deseja. Atingir essa meta é perder a motivação para alcançá-la e se contentar com objetivos secundários, que vão motivá-la pouco. Além disso, como em todo desejo há muito de ilusão, a meta alcançada sempre se revela menos grandiosa do que quando não a conquistamos. O prejuízo é então duplo – pelo pouco que representa o que desejávamos e pela insignificância do que nos resta alcançar.
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A amizade é por excelência um sentimento desinteressado. Nela não interfere o sexo nem a cumplicidade. Queremos um amigo pelo prazer de ter alguém perto. Alguém com quem conversar ou ficar em silêncio. Alguém que nos compenetre tão profundamente da ideia do Semelhante, que nos permita partilhar sem reservas a nossa humanidade.
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A frustração resulta de um malogro da vontade – e o depressivo não tem vontade. Seu propósito, aliás, é “querer” alguma coisa, ou seja, ter vontade de alcançá-la, possuí-la. Sua frustração decorre, não de não ter alcançado algo, mas de não se propor a isso.
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As palavras não têm sentido por si. Cada qual as interpreta como as sente. Dá-lhes um significado em função das próprias crenças. Isso explica, por exemplo, o valor que tem para um cristão uma passagem da Bíblia; para um muçulmano, um versículo de Maomé; ou, para um marxista, um trecho de “O capital”. A fé necessita de uma semântica para se expressar (e mesmo se edificar). Acreditar numa religião ou num sistema político é acreditar no sentido que os traduz. Nem sempre essa tradução é clara — às vezes precisa mesmo de alguma obscuridade para preservar o “mistério” que os torna imunes à razão.
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Amigos gostam de me perguntar se sou direita ou esquerda. Acho complicado escolher um lado ou outro sem saber o que objetivamente está em causa (para falar a verdade, sempre preferi entrar pelo meio). Mas já que eles insistem, vamos lá. Defino-me como um direitista gauche. E quem quiser que (des)entenda.

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