quinta-feira, 9 de maio de 2019

Acerto na mosca


“Estou com o presidente; é preciso legalizar o porte de armas. O mundo está muito violento, e a gente tem que se defender das ameaças que sofre todo dia. Não que eu vá sair por aí dando tiros; só farei isso em caso de necessidade. E convenhamos que eles são muitos. Ontem, por exemplo, notei um sujeito olhando fixamente para as pernas de Odete, minha mulher. Ela tem de fato pernas bonitas e gosta de usar uns vestidos curtos para mostrá-las. Até já brigamos por causa disso, mas eu cedi depois de ela dizer que não era justo que eu, por um ímpeto machista, buscasse “suprimir” uma parte do seu corpo. 
“A gente estava numa lanchonete, e um sujeito começou a fixar os olhos nas pernas dela. Parecia que eu, o marido, não me encontrava ali. Como ele era parrudo, eu não quis encará-lo, pois sabia que no braço ele facilmente ia me vencer. Tive que engolir em seco e ficar me roendo por dentro. Ora, isso não aconteceria se eu tivesse no bolso um 38 ou mesmo um 22. Nem era preciso tocar no tal sujeito e correr o risco de ser agredido. De uma distância segura, eu o botaria para sempre no chão.  
“Em várias ocasiões, tive o impulso de fazer coisa semelhante no trânsito. Ainda anteontem um cara passou tão rente ao meu carro que quase raspou um paralama dianteiro. Foi uma dessas cortadas provocadoras, uma espécie de chega pra lá automotivo (se é que essa expressão existe). Me apressei para  revidar, e quando emparelhamos os carros eu o chamei de fdp (tradução no Google). Pois em vez de escutar calado, já que não tinha razão, ele teve o desplante de me mostrar o punho e empinar o dedo médio. Depois de ter feito o que fez, ainda vinha me ofender com pornografia. Ah se eu tivesse ali uma pistola ou coisa semelhante! Acertava aquele dedo para o seu dono aprender a respeitar um homem. Desarmado, só me restou voltar vermelho de raiva para casa. Lá Odete me fez um chá de camomila (o Rivotril tinha acabado) e aos poucos fui me acalmando.
“Se as provocações viessem apenas da rua, estava tudo muito bem. O problema é que elas também acontecem no lugar onde a gente mora. Vivo num prédio não muito disciplinado, e o meu vizinho de cima tem o mau hábito de ouvir música com os amigos até altas horas da noite (e o que ouvem não é Mozart nem Beethoven). Já reclamei ao síndico várias vezes, mas o vizinho no máximo espaçou os encontros. Quando não é isso, arrasta móveis de madrugada. Penso que é para nos provocar. Semana passada não consegui dormir por causa do barulho. A vontade que tive foi subir lá e dar um tiro nele. Um, não; uns sete. Garanto que nenhum júri me condenaria, pois todos sabem o que a supressão do sono faz no cérebro de uma pessoa. Insone, insano – alguém já disse (ou fui eu mesmo, sei lá). O fato é que o tal vizinho era mais um que eu teria despachado para o outro mundo se possuísse em casa arma de fogo.
"Além de aborrecimentos desse tipo, vivo hoje na iminência de ter a casa invadida por marginais ou ser assaltado na rua. O porte de armas vai me proteger dessas tenebrosas possibilidades. É claro que eu terei que fazer um curso de tiro, pois esse pessoal, além de bem mais armado, exercita cotidianamente a mira. Mas isso não será problema; para ser coerente com a nova filosofia (essa deverá permanecer nos currículos escolares), o governo certamente estimulará a criação desse tipo de curso a fim de adestrar o cidadão. Só vai sobreviver quem atirar primeiro. Repito que estou com o presidente e não abro (a não ser fogo)." 

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O silêncio do inocente