“Estou com o presidente; é preciso
legalizar o porte de armas. O mundo está muito violento, e a gente tem que se defender
das ameaças que sofre todo dia. Não que eu vá sair por aí dando tiros; só farei
isso em caso de necessidade. E convenhamos que eles são muitos. Ontem, por
exemplo, notei um sujeito olhando fixamente para as pernas de Odete, minha mulher.
Ela tem de fato pernas bonitas e gosta de usar uns vestidos curtos para mostrá-las.
Até já brigamos por causa disso, mas eu cedi depois de ela dizer que não era
justo que eu, por um ímpeto machista, buscasse “suprimir” uma parte do seu
corpo.
“A gente estava numa lanchonete, e um
sujeito começou a fixar os olhos nas pernas dela. Parecia que eu, o marido, não
me encontrava ali. Como ele era parrudo, eu não quis encará-lo, pois sabia que
no braço ele facilmente ia me vencer. Tive que engolir em seco e ficar me
roendo por dentro. Ora, isso não aconteceria se eu tivesse no bolso um 38 ou
mesmo um 22. Nem era preciso tocar no tal sujeito e correr o risco de ser agredido.
De uma distância segura, eu o botaria para sempre no chão.
“Em várias ocasiões, tive o impulso de
fazer coisa semelhante no trânsito. Ainda anteontem um cara passou tão rente ao
meu carro que quase raspou um paralama dianteiro. Foi uma dessas cortadas provocadoras,
uma espécie de chega pra lá automotivo (se é que essa expressão existe). Me apressei
para revidar, e quando emparelhamos os
carros eu o chamei de fdp (tradução no Google). Pois em vez de escutar calado,
já que não tinha razão, ele teve o desplante de me mostrar o punho e empinar o
dedo médio. Depois de ter feito o que fez, ainda vinha me ofender com
pornografia. Ah se eu tivesse ali uma pistola ou coisa semelhante! Acertava
aquele dedo para o seu dono aprender a respeitar um homem. Desarmado, só me
restou voltar vermelho de raiva para casa. Lá Odete me fez um chá de camomila (o
Rivotril tinha acabado) e aos poucos fui me acalmando.
“Se as provocações viessem apenas da
rua, estava tudo muito bem. O problema é que elas também acontecem no lugar onde
a gente mora. Vivo num prédio não muito disciplinado, e o meu vizinho de cima
tem o mau hábito de ouvir música com os amigos até altas horas da noite (e o que
ouvem não é Mozart nem Beethoven). Já reclamei ao síndico várias vezes, mas o
vizinho no máximo espaçou os encontros. Quando não é isso, arrasta móveis de
madrugada. Penso que é para nos provocar. Semana passada não consegui dormir
por causa do barulho. A vontade que tive foi subir lá e dar um tiro nele. Um,
não; uns sete. Garanto que nenhum júri me condenaria, pois todos sabem o que a supressão
do sono faz no cérebro de uma pessoa. Insone, insano – alguém já disse (ou fui
eu mesmo, sei lá). O fato é que o tal vizinho era mais um que eu teria despachado
para o outro mundo se possuísse em casa arma de fogo.
"Além de aborrecimentos desse tipo, vivo
hoje na iminência de ter a casa invadida por marginais ou ser assaltado na rua.
O porte de armas vai me proteger dessas tenebrosas possibilidades. É claro que
eu terei que fazer um curso de tiro, pois esse pessoal, além de bem mais
armado, exercita cotidianamente a mira. Mas isso não será problema; para ser
coerente com a nova filosofia (essa deverá permanecer nos currículos escolares),
o governo certamente estimulará a criação desse tipo de curso a fim de adestrar
o cidadão. Só vai sobreviver quem atirar primeiro. Repito que estou com o presidente e não abro (a não ser fogo)."
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