Uma pausa, leitor. Hoje não se fala de pacote, de violência ou de praia suja. Estes são assuntos urgentes e práticos, que antes nos demandam ação do que reflexão. E o mundo não se conserta mesmo. Vamos dar um tempo a essa agitação frívola, nociva tanto ao corpo quanto à alma, e conversar com alguém muito especial. E ouvir coisas certamente profundas sobre os mistérios da vida e do ser.
Isso te assusta e agride? Deixa de ser tolo. A vida é
cheia de mistério e não é por negá-lo, querendo em tudo o raso e o chão, que
ele se arredará de ti. Não vires a página; fica. E vamos conversar com Clarice
Lispector. Foi numa tarde de domingo que ela visitou o meu escritório. Nessa
ocasião, como sabes, algumas pessoas estão na igreja, outras nos bares, outras
apenas sozinhas - esperando que o domingo passe. Clarice veio sem manto e sem
luz, com a humildade dos verdadeiros santos. E eu fui, como quem não queria
nada e em verdade querendo tudo, lhe fazendo as perguntas:
P-
Se tivesse de escolher entre a literatura e a maternidade, o que você
escolheria?
R-
(...) eu desistiria da literatura. Não tem dúvida que como mãe sou mais
importante do que como escritora.
P-
A mãe deve seguir alguma diretriz especial?
R-
À medida que os filhos crescem, a mãe deve diminuir de tamanho. Mas a tendência
da gente é continuar a ser enorme.
P-
Qual a sua mais remota lembrança ou impressão desta vida?
R-
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por
motivos que aqui não importam, eu de algum modo sentia que não pertencia a nada
e a ninguém. Nasci de graça.
P-
E da outra vida, há alguma remota lembrança ou impressão?
R-
Estou certa de que através da idade da pedra fui exatamente maltratada pelo
amor de algum homem. Data desse tempo um certo pavor que é secreto.
P-
Lendo os seus livros, a gente percebe que não apenas os seres humanos - também
os bichos lhe impressionam.
R-
(...) sinto os bichos como uma das coisas ainda muito próximas de Deus,
material que não inventou a si mesmo (...); e como uma das formas acessíveis de
gente.
P-
Qualquer maneira de chorar vale a pena?
R
- Há um tipo de choro bom e há outro ruim. O ruim é aquele em que as lágrimas
correm sem parar e, no entanto, não dão alívio. Só esgotam e exaurem.
P-
Você se considera uma pessoa ordenada?
R-
(...) as pessoas que se preocupam demais com a ordem externa é porque
internamente estão em desordem e precisam de um contraponto que lhes sirva de
segurança.
P-
Escrever lhe é substancialmente necessário?
R-
Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É
neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade.
P-
O escritor tem que estudar para escrever?
R-
(...) para escrever, o único estudo é mesmo escrever.
P-
Que pedido você faria ao linotipista que compõe os seus textos?
R-
(...) não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase
respira assim. E, se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui
obrigada a me respeitar.
P-
Hoje é domingo, Clarice, e nem eu nem você estamos na igreja. Você acredita em
Deus?
R-
Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude. (...)
Deus tem que vir a mim, já que não tenho ido a ele.
(Em “A rosa fenecida”, Ideia, 2002)
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