terça-feira, 28 de março de 2023

Relato de uma perda

 

Nada angustia mais os seres humanos do que a sua condição de mortais. A morte é o desfecho para o qual todos marchamos. Graças a ela criamos religiões, artes e demais recursos da fantasia na vã tentativa de vencê-la. Enquanto não chega, vamos nos virando neste jogo múltiplo e incompreensível chamado vida. Levianos, às vezes chegamos a esquecê-la, até o momento em que ela projeta em nós o hálito sombrio.

Recentemente tive essa experiência ao perder a minha sogra. Já com a idade avançada, ela tinha problemas de hipertensão e artrose em várias articulações, o que a mantinha praticamente imobilizada. Vivia (se é que se podia chamar a isso viver) entre a cama e a mesa, onde fazia sem muito gosto suas refeições. Vez por outra colocavam-na numa cadeira, próximo à calçada, de onde olhava a rua e cumprimentava os conhecidos.

De repente apareceu com falta de ar. Pensou-se que era efeito de uma chuvinha que a surpreendera num daqueles instantes de espairecimento, mas era coisa mais grave, e de nada adiantaram as nebulizações. Seu coração começava a dar sinais de falência e horas depois parou. 

A par da perplexidade e das lágrimas, vieram os ritos burocráticos (deles não escapamos nem na hora da morte). O corpo foi enviado ao IML, onde minha mulher respondeu a uma série de perguntas sobre as circunstâncias do óbito, até ser enfim liberado para o velório.

E então nos vimos naquela minúscula sala, circundando o esquife e cumprimentando os amigos e conhecidos que chegavam. É um lugar estranho para reencontrar parentes que há algum tempo não víamos. Mas, enfim, quem é vivo sempre aparece, enquanto aos mortos cabe perecer. A morte muitas vezes une os que a vida dispersa, talvez por ser um evento de que ninguém se livra. Perante ela nos tornamos humildes e solidários.

Após o ritual religioso e o fechamento do caixão, veio enfim o momento do enterro. Momento grave, de compungida reflexão, pois concretiza a ideia metafórica de que do barro viemos e ao barro vamos retornar. Minha sogra foi colocada onde estão os restos mortais do marido, morto há alguns anos, e houve quem visse nesse “reencontro” o selo de uma convivência marcada pela harmonia conjugal.

Enquanto os funcionários assentavam os blocos de laje sobre o caixão, eu olhava a pequena plateia silenciosa que acompanhava esse trabalho. O que passava pela cabeça de cada um era um mistério tão grande quanto saber o que fazemos aqui para chegar a tal desfecho. Dizem que não é bom pensar nessas coisas, mas como, em momentos iguais a esse, fugir à assustadora percepção do que nos espera?

Na volta para casa, nada falei que pudesse quebrar o silêncio da minha mulher. Sabia que ali, em meio a lembranças ainda vívidas, começava o lento e doloroso trabalho de esquecimento. Segundo Freud, é falando do morto que se realiza o luto. Mas a perda era recente demais para que nos animássemos a dizer qualquer coisa. Só depois, com o auxílio das palavras, iríamos recompondo-a sem maior sofrimento (e até com alegria) em nossas recordações.

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O silêncio do inocente