Nada
angustia mais os seres humanos do que a sua condição de mortais. A morte é o
desfecho para o qual todos marchamos. Graças a ela criamos religiões, artes e
demais recursos da fantasia na vã tentativa de vencê-la. Enquanto não chega, vamos
nos virando neste jogo múltiplo e incompreensível chamado vida. Levianos, às
vezes chegamos a esquecê-la, até o momento em que ela projeta em nós o hálito sombrio.
Recentemente
tive essa experiência ao perder a minha sogra. Já com a idade avançada, ela tinha
problemas de hipertensão e artrose em várias articulações, o que a mantinha praticamente
imobilizada. Vivia (se é que se podia chamar a isso viver) entre a cama e a
mesa, onde fazia sem muito gosto suas refeições. Vez por outra colocavam-na
numa cadeira, próximo à calçada, de onde olhava a rua e cumprimentava os conhecidos.
De
repente apareceu com falta de ar. Pensou-se que era efeito de uma chuvinha que
a surpreendera num daqueles instantes de espairecimento, mas era coisa mais
grave, e de nada adiantaram as nebulizações. Seu coração começava a dar sinais
de falência e horas depois parou.
A
par da perplexidade e das lágrimas, vieram os ritos burocráticos (deles não
escapamos nem na hora da morte). O corpo foi enviado ao IML, onde minha mulher
respondeu a uma série de perguntas sobre as circunstâncias do óbito, até ser
enfim liberado para o velório.
E
então nos vimos naquela minúscula sala, circundando o esquife e cumprimentando
os amigos e conhecidos que chegavam. É um lugar estranho para reencontrar parentes
que há algum tempo não víamos. Mas, enfim, quem é vivo sempre aparece, enquanto
aos mortos cabe perecer. A morte muitas vezes une os que a vida dispersa, talvez
por ser um evento de que ninguém se livra. Perante ela nos tornamos humildes e
solidários.
Após
o ritual religioso e o fechamento do caixão, veio enfim o momento do enterro.
Momento grave, de compungida reflexão, pois concretiza a ideia metafórica de
que do barro viemos e ao barro vamos retornar. Minha sogra foi colocada onde
estão os restos mortais do marido, morto há alguns anos, e houve quem visse nesse
“reencontro” o selo de uma convivência marcada pela harmonia conjugal.
Enquanto
os funcionários assentavam os blocos de laje sobre o caixão, eu olhava a
pequena plateia silenciosa que acompanhava esse trabalho. O que passava pela cabeça
de cada um era um mistério tão grande quanto saber o que fazemos aqui para
chegar a tal desfecho. Dizem que não é bom pensar nessas coisas, mas como, em
momentos iguais a esse, fugir à assustadora percepção do que nos espera?
Na
volta para casa, nada falei que pudesse quebrar o silêncio da minha mulher.
Sabia que ali, em meio a lembranças ainda vívidas, começava o lento e doloroso trabalho
de esquecimento. Segundo Freud, é falando do morto que se realiza o luto. Mas a
perda era recente demais para que nos animássemos a dizer qualquer coisa. Só
depois, com o auxílio das palavras, iríamos recompondo-a sem maior sofrimento (e
até com alegria) em nossas recordações.
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