segunda-feira, 19 de junho de 2023

Além da conta

 

O desabafo de Gonzaga Rodrigues durante o lançamento dos livros de Hildeberto, sábado retrasado, impressionou pela sinceridade e me deu o que pensar.

Pego de surpresa para dizer algumas palavras, ele aproveitou para lamentar o esquecimento a que os novos autores da Paraíba relegam os mais velhos. Isso veio de mistura com uma espécie de autorrecriminação por jamais ter ido além da crônica e não ter nos dado o romance a que deveria conduzi-lo a sua consciência social.

Gonzaga parecia acometido de um duplo remorso – literário e histórico –, e me pergunto até que ponto o primeiro não foi influenciado pelo segundo. Como se as posições políticas só tivessem peso e evidência quando expressas num gênero de fôlego, como é o romance, e perdessem a validade numa espécie literária “menor” (afinal os cronistas, como disse Agripino Grieco, são excelentes nadadores... de piscinas).

Mas como ele mesmo reconheceu no breve e inflamado discurso, se objetivamente não conseguiu traduzir as mudanças que houve no Brasil a partir 1960 por falta de uma forma literária mais abrangente, ou prestigiosa, realizou-se do ponto de vista subjetivo nos textos que há décadas vem publicando na imprensa. Quem o ouvia, no entanto, percebeu que isso não bastava para diminuir o ressentimento com os que o ignoravam. Pelo contrário, acentuava-o, pois deixava claro o descompasso entre o reconhecimento e o valor.   

Foi um desabafo “fisiológico”, conforme ele comentou comigo quando eu lhe disse, terminado o discurso, que tinha sido muito severo consigo mesmo. Veio das entranhas, com a força das coisas sentidas, por isso tocou fundo os que estavam no Sebo Cultural. Ninguém concordou com a severidade do julgamento, mas respeitou aquele instante de ajuste de contas, que é tanto mais rigoroso quanto maior é a cobrança que o indivíduo faz a si mesmo.

A crônica é um gênero teoricamente “menor”, que se engrandece em função do talento de quem a pratica. Se não tem amplitude para registrar transformações sociais, dá-nos uma ideia dos seus efeitos na forma como elas repercutem na sensibilidade do cronista. Quem lê o “Nego” há anos, como eu, sabe o que ele pensa sobre a iniquidade da distribuição de renda no País; percebe como ele se indigna com a exploração do homem pelo homem; conhece a sua tristeza com o abandono histórico do Nordeste.

E de quebra usufrui do que a sua pena de cronista nos traz. Admiro-lhe particularmente o lirismo na evocação de lugares, pessoas, acontecimentos, e o olhar perspicaz com que ele acompanha as transformações da cidade. Isso para não falar dos perfis de amigos ou personalidades, em que se destaca a nota humana -- o homem sempre mais importante do que o ofício ou a posição. Tudo isso aparece em recortes breves, nada romanescos, mas que são valorizados pelo estilo e a habilidade de captar o essencial.

Todos têm o direito de fazer suas cobranças pessoais, mas é dever de justiça apontar quando elas vão além da conta. Foi o que houve naquele sábado diante de uma plateia surpresa, que permaneceu em silêncio mas não concordava com o que ouvia.

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