segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

O duplo

 

Mal coloca a primeira palavra no papel, ele ouve uma voz:
         – Finalmente você se decidiu...
         – Hein?! Se decidiu a quê?
         – A começar o texto, ora. Faz tempo que eu estou esperando.
         – Quem é você?
         – Sou o seu leitor. Vê se capricha para não me decepcionar.
         – O meu leitor? E o que está fazendo aqui? Espere pelo menos eu terminar. Sua hora vem depois.
         – Nada disso. Quero acompanhar o seu trabalho, talvez dar uma força. Afinal, você escreve para mim. Tenho todo o direito de lhe cobrar.
         – Cobrar?! Agora eu quero liberdade. Sua presença vai terminar me bloqueando. Dê o fora!
         – Dar o fora... Cuidado para não se arrepender do que está dizendo. Você pensa que significa alguma coisa sem mim?
         – Não seja pretensioso. Tenho liberdade para dizer o que quero, a quem quero e como quero.
         – Aí é que você se engana. Posso reduzir o que faz a uma insignificância. Posso estragar sua reputação e impedir que outros o leiam. E o pior: posso deixar você na mais completa solidão.
        – Como?
        – Ignorando os seus escritos. Deixando que fale sozinho.
        – Bem... sei que você tem esse poder, mas não é por isso que vou lhe aturar. E se me encher muito o saco, posso acabar dispensando-o. Escrevo para mim, e pronto.
        – Deixe de blefe! Você bem sabe que isso não é possível. Qual o sentido de escrever para si? Quem iria atestar o seu valor (caso você tenha)? Ou afagar a sua vaidade (que seguramente você tem)?
        – Todo homem tem direito à vaidade se o que faz é bom.
        – Mas quem decide sobre a qualidade do que ele faz? Ele próprio? Aí não seria vaidade, seria... delírio. Conheço muitos que vivem de fantasiar a própria glória; esses dão pena. Acho que você não é um deles.
        – Escute, essa conversa está me impedindo de escrever. Dê o fora e espere o texto ficar pronto. Aí você diz o que quiser.
        – Mais um blefe! Você está preocupadíssimo com o que eu possa dizer. Por que finge indiferença?
          – Não posso escrever enquanto você estiver por perto vigiando minhas palavras e avaliando se elas vão lhe agradar ou não. Isso é tirania.
          – Eu proponho que você me esqueça e faça o que tem que fazer.
          – Não faço, pronto! Desisti. Assim também deixo você frustrado. Não terá o que ler...
          – Para mim, tanto faz. Não vou mesmo perder muita coisa. Você está sem assunto.
          – Assuntos não faltam, ora!
          – Mentiroso. Está sem assunto, sim. E aposto como vai terminar, por falta do que dizer, contando esta conversa entre nós dois. Como se ela interessasse a alguém!

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O poder da frase